sábado, 2 de agosto de 2008

O Anglicanismo e sua Liturgia

A beleza e a ordem nascem do coração de Deus, que concede ao ser humano a inata sensibilidade estética, que pode ser aperfeiçoada com a educação. Daí o mandato cultural à humanidade incluir o desenvolvimento da Arte, em suas diversas expressões (plásticas, dramáticas, musicais etc.). A Arte Sacra tem sido aspecto central das manifestações culturais em todas as épocas. Ela destina-se a glorificar a Deus e aproximar o ser humano do Sagrado.

Deus, nosso Pai, na Primeira Aliança, comunicou todos os detalhes da construção do Santuário: arquitetura, decoração, móveis e utensílios, e as próprias vestes dos sacerdotes. O templo, construído por Salomão, além da sua funcionalidade para o Culto e o Sacrifício, era marcado por sua beleza, dedicado a Deus, o Sumo Belo, e o Criador da Beleza. A feiúra, a inestética, o não-belo, em todas as suas expressões, é um resultado do pecado, e a plena beleza, como no Jardim do Éden, será restaurada, após o Juízo Final, na Nova Jerusalém.

A Arte Sacra, elaborada por corações contritos, é forma de adoração: os templos, as cerimônias, os ritos ali realizados são Liturgias (no original leitourgia = trabalho do povo). Todas as igrejas, de todas as correntes, são litúrgicas, valorizando ou não a História, com maior ou menor elaboração, conteúdo, nível estético ou doutrinário. As chamadas “liturgias improvisadas” são tão cristalizadas quanto qualquer outra, pois se pode prever cada passo do “improviso” .

Apesar das perseguições do Império Romano, a Igreja Primitiva adotou símbolos, como a cruz e o peixe, e elaborou formas de culto, especialmente para a celebração dominical do Sacramento da Ceia do Senhor. Pode-se verificar esse fato na Carta de Clemente Romano aos Coríntios, ainda no final do primeiro século, e, no segundo século, em textos como o Didaquê, a Carta de Plínio ao Imperador Trajano, e o texto de Justino, o Mártir, sobre o Culto Dominical. No terceiro século, os textos de Hipólito e Cirilo já explicitam Ritos Eucarísticos plenamente elaborados, com as diversas partes que adotamos hoje. No Oriente, as Igrejas Pré-Calcedônias vão adotar o Rito atribuído a Tiago, o irmão do Senhor, e as Igrejas Bizantinas, o rito atribuído a João Crisóstomo. No Ocidente, durante a Idade Média, vão surgir, influenciados pelas culturas regionais, dentre outros, os ritos Romano, Galicano e de Sarum (este na Inglaterra).

Com a Reforma Protestante, foi no Luteranismo onde se expressou uma maior preocupação estética, com a preservação dos antigos templos, e a reelaboração de Símbolos, Cerimônias e Ritos, mantidos em sua beleza histórica, porém expurgados dos desvios doutrinários surgidos na Igreja de Roma no período anterior. A posição Luterana foi: “Devemos manter tudo aquilo que a Igreja Cristã elaborou, e que não se choque com a Palavra de Deus” . O Anglicanismo – como parte da mesma Primeira Reforma – seguiu a orientação Luterana. Isso contrastava com radicalismos encontrados entre Calvinistas: o culto como “quatro paredes caiadas e um sermão” , ou entre setores Anabatistas, que, adotando a incorreta teoria da “apostasia geral da Igreja” , negava toda criação de quinze séculos, e pretendia uma ahistórica reconstituição idealizada da Igreja Primitiva. Lutero sai do seu exílio, onde estava traduzindo a Bíblia, para combater a Iconoclastia (destruição das obras de Arte Sacra) empreendida pelo extremista Carlstad . O radicalismo iconoclasta surge sempre da generalizada identificação entre Arte Sacra e Idolatria, que não tem base nem no Judaísmo, nem no Cristianismo, mas que vai se instalar no Islamismo, e em setores do Protestantismo posterior.

Apesar da importância do trabalho teológico de um Richard Hooker , e do conteúdo doutrinário dos XXXIX Artigos de Religião, o Anglicanismo, pelo gênio do Arcebispo Thomas Cranmer , coloca nossos princípios doutrinários na Liturgia popularizada do Livro de Oração Comum (LOC), dando lugar à compreensão, entre nós, do “Lex Credendi, Lex Orandi” , confessamos aquilo que oramos. O Livro de Oração Comum teve várias edições, refletindo um período de instabilidade política da Inglaterra (com governos protestantes – anglicanos e presbiterianos – e católicos romanos): 1549, 1552, 1559, 1604, e, finalmente, 1662, adotada desde então. O objetivo do Livro de Oração Comum foi sistematizar e simplificar um conjunto de liturgias históricas reformadas no vernáculo, colocada nas mãos do clero e do povo.

O Livro de Oração Comum de 1662 foi o único adotado pela Igreja da Inglaterra dos séculos XVI a XIX, em todo o mundo, com profundas influências em outras denominações. Com o surgimento da Comunhão Anglicana, no século XIX, cada Província viria a adotar sua própria versão do LOC, além de ritos complementares ou alternativos, mantidos a estrutura e a doutrina originais. O Conselho Consultivo Anglicano (ACC) tem orientado como princípios para essas reelaborações: a) a fidelidade às Sagradas Escrituras; b) a flexibilidade pastoral; c) a Inculturação; d) a Inclusividade/Ecumenicidade

No Brasil, um excelente trabalho foi empreendido por nosso segundo Bispo, Dom Thomas , resultando no LOC brasileiro de 1930, contendo: Calendário e Lições para o Ano Cristão, Batismo, Matrimônio, Ofícios de Sepultura, Oração Matutina, Oração Vespertina, Ceia do Senhor, Saltério, Ordinal (Ordenações de Diáconos, Presbíteros e Bispos), Catecismo, XXXIX Artigos de Religião, fórmulas para os cultos domésticos e orações especiais para festas (como a Quaresma) ou ocasiões (como visita a parturientes ou enfermos). Ou seja, um LOC completo, que foi respeitado e amplamente popularizado.

Do Prefácio daquela edição, lemos: “Da Igreja da Inglaterra recebeu a nossa Igreja-Mãe o bom depósito da Fé uma vez confiada aos santos” , e dessa origem remota, que vai entroncar nos tempos apostólicos, é que, através de quase vinte séculos de milícia, o devocionário cristão chegou até nós como um tesouro de incalculável valia. Desse precioso legado esta Igreja herda e seleciona o seu ritual, escoimada a velha liturgia de tudo aquilo que possa colidir com a Palavra de Deus, ou impedir a Igreja de correr, no grande estádio da vida moderna, a carreira que lhe está proposta perante uma tão grande nuvem de testemunhas. E, ainda: “Exuberante prova do espírito construtivo e conservador desta Igreja é fornecida por este Livro nas belas instruções que ministra sobre a Doutrina da Santíssima Trindade, a salvação pela Fé em Cristo, o ensino bíblico sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria e os Santos Apóstolos e Mártires, a confissão a Deus, a necessidade de arrependimento, os sacramentos administrados pela forma prescrita nas Santas Escrituras, e muitos outros pontos interessantíssimos da Fé Cristã, todos concorrentes à edificação das almas, sem o sacrifício da consciência, essa luz preciosa e brilhantíssima com a qual Deus distinguiu a criatura humana” .

Necessidade de atualização lingüística, e mudança de linha teológica (do evangelicalismo para o anglo-catolicismo, e, deste, para o liberal-catolicismo) levaram a Província do Brasil a abandonar o LOC de 1930 e publicar uma nova versão profundamente mutilada e limitada em 1984, ausente a maioria dos itens de um LOC normal. O Anglicanismo no Sul tendeu a um ritualismo frio, pobre em cerimônias, enquanto no Nordeste tendeu à direção contrária, com cerimônias imitativas de outras ondas denominacionais, empobrecendo o Rito.

O Brasil foi marcado pela proibição de sinais externos de arte sacra não Católica Romana e de ritos apenas em línguas estrangeiras para protestantes imigrantes, durante a Colônia e o Império, pela falta de recursos das igrejas para investimento na arte de adoração, pelo limitado nível cultural dos fiéis, que atingia a sensibilidade estética, e por um antagonismo radical anti-católico romano, que não soube distinguir o essencial do acidental, seguindo antes o extremismo Anabatista do que o equilíbrio Luterano e Anglicano. Ultimamente, com os cultos midiáticos, centrados nos pastores e cantores artistas, fartos de “animação” e rasos de conteúdo, sem ordem, com a “corinhologia” pauperizada em teologia e no vernáculo, temos apenas agravado a crise Litúrgica, que empobrece o nível do povo de Deus.

A tradição Anglicana tem, historicamente, se preocupado com a beleza arquitetônica e a decoração dos nossos templos, com o lugar apropriado para a cruz, o altar/santa mesa, o atril, o púlpito, os assentos laterais para clero e coro, as vestes, a ordem do processional precedida pelo cruciferário, a dignidade, solenidade e reverência no culto, com uma liturgia participativa e dialogal, entre celebrantes e povo. Essa tradição se encontra em choque com o “informal” (?) espírito Pós-Moderno e com a hegemonia anabatista-pós-pentecostal do culto-espetáculo.

Há de se fazer uma diferenciação entre os Símbolos (presentes nos vitrais, azulejos, mosaicos, móveis e utensílios, como a cruz, o cálice e a patena, as cenas bíblicas) e as Cerimônias, que é o “como” da condução dos Cultos, com seus gestos, suas orações extemporâneas, ao tipo de cântico e de presença de grupos de música ou de dança, o uso ou não de velas e incenso, o persignar-se (sinal da cruz), que, de acordo com as várias correntes litúrgicas dentro de Anglicanismo, e as preferências pessoais e comunitárias, são legítimos em sua diversidade, dos Ritos, que são as palavras textuais, com conteúdo doutrinário, e que não são descartáveis ou selecionáveis, mas de todos os celebrantes se requer. Por outro lado, as Rubricas do LOC, sobre procedimentos e o que é reservado para o Bispo, os Presbíteros e os Diáconos, em nossa Igreja , têm força de Lei.

Na situação de excepcionalidade em que se encontra a nossa Diocese, o LOC da IEAB, o Livro de Ritos Opcionais da DAR e o novo LOC editado por irmãos continuantes são fontes para a nossa prática litúrgica. É dever do Clero conhecer, amar e compartilhar, com fidelidade e criatividade, da nossa Liturgia junto ao nosso Laicato, dando uma contribuição (e não sendo cooptados) para superarmos a pobreza, a superficialidade e a anarquia litúrgica reinante no Cristianismo brasileiro reformado em nossos dias.


(Compilação: Revmo. Dom Robinson Cavalcanti )

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