Mostrando postagens com marcador milagre. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador milagre. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 28 de maio de 2007

A Teologia do Milagre

Desde os princípios da humanidade, os fenômenos extraordinários, assombrosos ou maravilhosos causaram não apenas estupefação, mas também reflexão e pensamento religioso, seja na autenticidade, seja no imaginário. Mesmo nos dias atuais, eivado de racionalismo, é fácil perceber a influência de tais fenômenos. Curas, possessões, exorcismos, fantasmas, mau-olhado, encosto, casas mal-assombradas, trabalhos-magias, fenômenos carismáticos e tantos outros assuntos similares pertencem aos âmbitos religioso, ficcional, de superstição, de cinema, de processos psiquiátricos ou de sensacionalismo. Somente alguém distanciado das lides pastorais da Igreja desconsideraria sua relevância.

No âmbito judaico-cristão, os fenômenos extraordinários têm importância capital. A Revelação de Deus, que tem uma natureza pública e social, expressa-se por palavras, mas também através de fatos e mesmo através de fatos prodigiosos que chamamos milagres. Os milagres fazem parte da Revelação e como tal devem ser considerados.

Assim, convém esclarecer alguns aspectos gerais que facilitam a compreensão e o oportuno julgamento que muitas vezes é requerido ao teólogo-pastor. Negar a possibilidade de fenômenos extraordinários ou sobrenaturais seria puro ceticismo. Acreditar na veracidade e sobrenaturalidade de todos os pretensos casos seria colecionar o maravilhoso imprudentemente, expondo a Igreja ao risível. Nada dizer seria deixar livre curso ao imaginário. O presente artigo é uma sistematização a partir de uma importante bibliografia sobre o assunto[1], porém não pretende ser exaustivo. Além disso, pode-se encontrar ampla e diversa bibliografia relacionada[2].

1 O que é um milagre?

Milagre vem do latim miraculum. Na Antigüidade clássica era um fato excepcional ou inexplicável, um fato maravilhoso ou extraordinário que suscita admiração, considerado como sinal e manifestação de uma vontade divina[3].

A partir do testemunho bíblico, percebe-se uma evolução na compreensão teológica do milagre. Os momentos centrais dessa compreensão foram a doutrina de Santo Agostinho, de Santo Tomás e a resposta apologética à crítica ilustrada. O Magistério da Igreja ocupou-se do milagre, sobretudo a partir do Concílio Vaticano I.

a) Na Sagrada Escritura

As coordenadas da linguagem bíblica sobre o milagre são diversas. O termo traduziu a riqueza expressiva dos termos hebraicos ot, nifla’ot, nora’ot, môfét, e os termos gregos sêmeia, dýnamis, thaúmata, térata, parádoxa, etc.

Para o aspecto psicológico do milagre: no Antigo Testamento encontramos môfét, que significa prodígio, um fato insólito, que provoca assombro, admiração, surpresa. No Novo Testamento, encontramos thaumázo e téras, com o mesmo tipo de significado. No entanto, esse prodígio, aos olhos da Sagrada Escritura, não é um prodígio profano, mas sagrado.

Para o aspecto factual, ontológico: no Antigo Testamento, encontramos nifla’ôt, que são obras próprias de Deus e impossíveis para o homem (ações divinas), manifestações e efeitos do poder divino. É o aspecto ontológico do milagre: obra transcendente, impossível às criaturas, o que supõe uma intervenção especial da causalidade divina.

Para o aspecto intencional ou semiológico ou noético: no Novo Testamento, encontramos sêmeion (l. signum), pois o milagre não é somente um prodígio que suscita o assombro, mas um sinal que Deus dirige aos homens. O milagre é portador de uma intenção divina que há de ser lida. Assim, ora Deus dá a entender que está com o seu enviado (p. ex., Moisés, Elias), ora que chegou o Reino (p. ex., nos “sinais” operados por Jesus).

Assim, para a Sagrada Escritura, o milagre é um prodígio religioso (aspecto psicológico), uma obra de poder (aspecto da causalidade), um sinal dirigido por Deus (aspecto da intencionalidade). Especialmente nos Evangelhos, é considerado como sinal, isto é, como “palavra plástica” de Deus que interpela o homem e o ajuda a proferir um ato de fé na mensagem transmitida por Cristo. Ou seja, os milagres são sinais divinos que não podem dar-se separados ou isolados da Revelação de Deus à qual pertencem e que expressam.

b) Em Santo Agostinho

Nos Padres, o milagre é apresentado dentro do conjunto da Revelação e da fé, destacando seu caráter de sinal assim como a função que lhe é própria: orientar à Revelação.

Santo Agostinho foi o primeiro a estabelecer uma doutrina sistemática sobre o milagre, que influirá até ao século XII. Considera o milagre no horizonte da atividade criadora de Deus, que deixou sementes e virtualidades nas coisas (rationes seminales). No milagre importa mais o seu valor de sinal e não tanto o de transcendência física. Ele reconhece no milagre a intervenção divina, que não consiste, no entanto, em um ato de poder criador de Deus, mas em um desígnio de sua providência, mediante o qual desperta “a energia” que já havia depositado nas coisas. Os milagres seriam fenômenos que Deus provoca a partir das sementes secretas que se encontravam em germe desde a criação. Portanto, de certa forma, tudo, na natureza e no mundo, pode ser considerado como milagre, e os milagres especiais o são por seu caráter insólito e extraordinário. O fundamental neles não é o poder que mostram, mas que Deus pode utilizá-los de modo especial como sinais. Em De Trinitate, são propriamente milagres e sinais aqueles fatos que se apresentam a nossos sentidos para transmitir-nos algo divino[4]. Em De utilitate credendi, milagre é tudo o que, sendo difícil e não-habitual, supera as esperanças e o poder do espectador assombrado[5]. Portanto, um acento no psicológico: para Santo Agostinho, o importante no milagre é sua capacidade de elevar o homem à inteligência das realidades do mundo da graça. Não nega a intervenção direta de Deus, mas acima de tudo é um sinal devido ao seu caráter não-habitual ou extraordinário. Uma síntese do pensamento agostiniano sobre o milagre encontra-se no comentário sobre a multiplicação dos pães, em Tractatus in Ioannis Evangelium[6].

c) Em Santo Anselmo e Santo Tomás

Santo Anselmo distingue tríplice causalidade: a da natureza, a do homem, a de Deus. A natureza e o homem não podem fazer nada sem Deus, mas Deus pode atuar sem a natureza e sem o homem. O milagre tem que ver com a causalidade divina, independentemente de toda causa segunda; é um fato transcendente, que só pode atribuir-se a Deus. Portanto, um acento no ontológico.

Santo Tomás de Aquino ocupou-se do milagre em diversos lugares[7]. O Aquinate retoca a definição de Santo Agostinho: Miraculum dicitur arduum et insolitum supra facultatem naturae et spem admirantis proveniens[8]. Afirma que nos milagres podemos distinguir: primeiro, o que nele ocorre, quer dizer, algo que supera as forças da natureza, que é o que faz designar o milagre como ato de poder; em segundo lugar, a finalidade do milagre, isto é, a manifestação de um caráter sobrenatural; finalmente, seu caráter excepcional é que os faz designar como prodígios ou maravilhas[9].

Ainda, o Doutor Angélico distingue três gêneros de milagres, segundo a distância entre o fato devido à intervenção divina e as possibilidades das causas segundas: milagres em que Deus obra algo que a natureza nunca pode fazer; milagres em que Deus obra algo que a natureza pode realizar, mas em outra ordem; milagres em que Deus obra algo que também as criaturas fazem, mas o faz sem ater-se a determinadas exigências[10].

d) Na crítica ilustrada e na Apologética

Depois de Santo Tomás, acentuou-se o aspecto ontológico, sem preocupação demasiada com os outros aspectos. A própria idéia de Santo Tomás sobre lei e natureza acabaram cedendo espaço às idéias racionalistas: a lei no contexto moderno. A natureza, pensam os deístas e ilustrados, está regida por leis necessárias e inalteráveis, postas por Deus. Postula-se, então, sobre bases filosóficas, uma visão determinista da natureza. Um determinismo que acabou adversário da possibilidade do milagre. Nessa visão da natureza, o milagre torna-se impossível; claro está, dentro da visão da crítica ilustrada onde a noção de Deus é a própria do deísmo ou do panteísmo, onde Deus é entendido como suprema Razão que se manifesta na universalidade e necessidade, mas que se vê incapacitada de integrar a liberdade.

A resposta da Apologética teológica insistiu sobretudo na possibilidade dos milagres e na “quebra” das leis naturais que os caracteriza e que somente Deus pode realizar. Ao centrar-se de maneira preponderante na transcendência física do milagre, a Apologética deixou, de certo modo, que o caráter de sinal caísse no esquecimento. Ao ater-se somente à consideração do milagre/prodígio, concebido como um fato de ordem física que supera a força eficiente de todas as criaturas, sem apelar ao caráter intencional, reduz um problema religioso a um problema de pura causalidade eficiente. Pois o milagre em sua especificidade mais profunda é um sinal de uma ordem da graça dirigido por Deus.

e) Numa renovação na idéia de milagre

Uma fonte de renovação sobre o pensamento em torno ao milagre deve-se ao filósofo Maurice Blondel. Para ele, o milagre não é somente um prodígio físico que se refere exclusivamente aos sentidos, à ciência ou a filosofia, mas que é, ao mesmo tempo, um sinal dirigido a todo homem, um sinal de ordem espiritual e de caráter moral e religioso, um sinal que revela, não apenas a existência da Causa Primeira (do que os fatos naturais são suficientes para assegurar-nos), mas, sobretudo, a bondade de um Deus Pai que marca sua intervenção especial e que autentica desse modo um dom sobrenatural.

Assim, o milagre tem uma realidade física. Não é somente um fato extraordinário, percebido aos olhos da fé; é um testemunho escrito por Deus nos fatos. Se o milagre é verdadeiramente figurativo da bondade “anormal” de Deus, é preciso que possua uma realidade física. Os milagres são benefícios temporais verdadeiros e reais. O milagre é o análogo do sobrenatural. Situa-se no juízo mesmo de dois mundos: é sinal sensível das realidades invisíveis.

Mais. O milagre tem uma função no tempo presente: um benefício real. Mas este benefício não é mais que uma prefiguração, uma antecipação fugidia da “terra prometida”. O milagre pertence ao mundo da Revelação divina. Por sua própria natureza, o homem não pode ser mais que servidor, amigo, “filho adotivo”: numa invenção sobre-humana e supradivina do amor. O milagre é a “teofania” da bondade misericordiosa e favorável que triunfa sobre a natureza e sobre o tempo no tempo e na natureza mesma. Os milagres são “atos falantes”, “palavras atuantes”. Se o milagre nos desconcerta e nos inquieta, é porque nos urge à conversão. Em sua relação com a doutrina da fé, o milagre é motivo de credibilidade. Mostra a bondade da mensagem em exercício.

Ainda: é impossível demonstrar cientificamente a transcendência de um fato. Mas o milagre não se situa nesse nível. Não fala a linguagem da ciência. O que se pode constatar é seu caráter extraordinário e perceber sua relação com a mensagem de Deus. O milagre é o que na ordem sensível se leva a cabo divinamente, com vistas ao sobrenatural. O milagre recorda-nos que o mundo é criado por Deus, que não existe mais que nEle e para Ele.

Portanto, para Blondel, o milagre é ao mesmo tempo um fato extraordinário que rompe bruscamente com o curso habitual das coisas e uma manifestação absolutamente particular da bondade de Deus Pai. Um sinal figurativo e confirmativo da mensagem cristã. Um sinal da “anormal” bondade de Deus. Um prodígio significante: aurora da nova criação.

Segundo R. Latourelle, milagre é um prodígio religioso, que expressa na ordem cósmica (o homem e o universo) uma intervenção especial e gratuita do Deus de poder e de amor, que dirige aos homens um sinal da presença ininterrupta de uma palavra de salvação no mundo.
Assim, em primeiro lugar, é um prodígio na ordem cósmica, um fenômeno insólito que altera o curso habitual das coisas e que causa surpresa e admiração. Em segundo lugar, é um prodígio religioso ou sagrado, ou seja, realizado num contexto religioso (não-fantasmagórico, fabuloso ou mítico). No contexto profano, o milagre não teria nenhum sentido e nenhuma razão de ser. Em terceiro lugar, é uma intervenção especial e gratuita do Deus de poder e de amor. Em quarto lugar, é um sinal divino, ou seja, é um prodígio com significado.

f) No Magistério Católico

Não há uma definição completa de milagre dada pelo Magistério da Igreja, ou seja, nunca o julgou necessário ou nunca a quis dar. O Concílio Vaticano I indica as características do milagre: são fatos divinos, isto é, têm Deus como autor, ao menos como causa principal, e são fatos distintos dos da Providência ordinária supondo uma intervenção especial de Deus; são sinais dirigidos por Deus aos homens para ajudar-nos a reconhecer que Deus falou à humanidade; causam assombro[11].

Pio X recolhe no juramento antimodernista o mesmo ensinamento do Vaticano I, insistindo na idéia de que os milagres são motivos de credibilidade acomodados a toda época[12]. Pio XII refere-se também ao juízo certo de credibilidade, que se apóia nos milagres, acerca da origem divina da religião cristã[13].

No Concílio Vaticano II mencionam-se: “obras, sinais e milagres pelos quais Cristo revela e atesta a Revelação”[14]; “os milagres de Jesus permitem comprovar que o Reino de Jesus já chegou à terra”[15]; Cristo “apoiou e confirmou sua pregação com milagres para excitar e robustecer a fé dos ouvintes, mas não para exercer coação sobre eles”[16].

2 As condições de um milagre

A Teologia afirma que o milagre é essencialmente um sinal ou palavra-feito de Deus, dotada de três características. Com efeito, o milagre é: a) um fato real, b) totalmente inexplicável pela ciência contemporânea ao mesmo, c) realizado em autêntico contexto religioso, como sinal ou resposta de Deus a esse contexto.

Um fato real: porque requer-se que o episódio apresentado seja histórico, autêntico, real. Sabe-se quanto a imaginação é fértil em criar casos maravilhosos ou, ao menos, em aumentar as dimensões estranhas de determinado fato. Também o subconsciente, com suas aspirações íntimas, a alucinação, a sugestão, é responsável por muitos dos casos tidos como milagres pelo vulgo.

Um fato inexplicável pela ciência contemporânea ao mesmo: a ciência moderna tem elucidado numerosos fenômenos que, na época de sua ocorrência, foram tidos como milagres. Mas há fatos (p. ex., nos Evangelhos) que a ciência não explica, nem jamais explicará. Mas basta para ser “sinal” que a ciência contemporânea não o saiba explicar, nem conheça pista para explicá-lo futuramente.

Um fato realizado em autêntico contexto religioso: o milagre vem confirmar, da parte de Deus, uma atitude religiosa do homem. Ora, Deus só pode confirmar valores autênticos e verdadeiros. Por isso, mesmo quando a ciência considera inexplicável um fato, a Igreja permanece reticente. Ela examina as circunstâncias: terá sido resposta a uma prece humilde, confiante, inspirada na verdadeira fé? Terá servido para confirmar um servidor de Deus cuja doutrina ou cujo comportamento precisavam da chancela do próprio Deus? Será que o prodígio se verificou em contexto de magia, crendices, superstições, culto ao demônio?

Portanto, por sua própria índole, o milagre é um sinal, ou uma palavra “plástica” dirigida por Deus a determinada porção da humanidade, a fim de suscitar a fé dos homens ou tornar mais facilmente acreditável aquilo que o milagre assinala (a mensagem ou a pessoa). O milagre é uma das formas da comunicação reveladora de Deus. Forma parte das obras, através das quais, junto com as palavras, tem lugar a Revelação. Às obras concretamente compete manifestar e confirmar a doutrina[17]. A função significativa que os milagres oferecem da Revelação realiza-se em vários níveis: são sinais do poder misericordioso de Deus (p. ex., Mt 9, 1-8); são sinais do Reino messiânico (p. ex. Mc 1, 35-39); são sinais da missão divina de seus enviados (p. ex., Ex 4, 1; 14,31; 1 Re 18, 37-39; Mt 11, 21; Jo 3, 2; 7, 31; At 2, 22; 10, 38); são sinais da glória de Cristo (p. ex., Mt 11, 27; Jo 1, 14; 3, 35); são sinais de salvação (p. ex., Mc 1, 40-45; Lc 5, 10); são sinais escatológicos (p. ex., Cl 1, 18; Rm 8, 11).

3 Aspectos positivos e negativos a observar nos fenômenos

Podemos observar aspectos positivos e negativos durante a análise de um possível milagre. Critérios negativos (não são reconhecidos como milagres) são:

- os fenômenos ambivalentes: suscetíveis de dupla interpretação (natural ou transcendental). Certos acontecimentos podem verificar-se tanto em contexto religioso como em contexto puramente natural (p. ex., vozes interiores, êxtases, sonhos premonitórios, adivinhação do pensamento, visões, etc). Muitas vezes será difícil distinguir;

- os fenômenos de experiência meramente individual: só uma determinada pessoa o vive e o conhece. São verdadeiros sinais para a pessoa, inclusive podem ser de Deus, mas não podem ser utilizados como mensagem destinada a mais pessoas. Tais sinais têm algo de incomunicável, pois implicam um tanto de experiência imediata e de intuição, que não se pode enquadrar em um esquema objetivo e válido para o grande público (p. ex., sinais da Divina Providência, sonhos, iluminações, etc). Muitas vezes poder-se-ia apelar à mera coincidência e, em outros casos, à sugestão;

- as curas de moléstias funcionais. As curas de doenças são os mais comuns “milagres”. Devem-se distinguir-se doenças orgânicas das funcionais. As doenças orgânicas são as doenças nas quais há um ou mais órgãos afetados na sua integridade anatômica ou histológica, ou deformado e degenerescente, de modo a estar em vias de perecer. As doenças meramente funcionais são as doenças que não dependem de lesão física mas de perturbação do sistema nervoso. Existem perturbações histéricas pseudo-orgânicas que apresentam todos os sintomas de uma lesão orgânica, sem que esta exista realmente. Há quem mencione também as doenças psicossomáticas, nas quais um fundo nervoso está associado a lesões orgânicas. Em alguns casos, o elemento psíquico predomina e é diretamente responsável por irritações orgânicas (p. ex., dermatoses, moléstias cardíacas). Em outros casos, o fator orgânico predomina, mas o estado psíquico ou afetivo do paciente influi. Para “milagres” interessam as lesões orgânicas nitidamente diagnosticadas e tidas como incuráveis pela medicina contemporânea.

Existem também circunstâncias que desabonam um pretenso “milagre”: ambiente de irreverência a Deus, imoralidade, charlatanismo ou ilusionismo, cobiça de lucros materiais ou aceitação destes, ocasião de orgulho, vaidade ou sensualidade e culto da personalidade; ambientes de sensacionalismo e alarde, de fantasia e vã curiosidade, pois as obras de Deus costumam ser discretas; espírito de arrogância e de domínio com que alguém trata as coisas de Deus.

São critérios positivos:

- no caso de cura, em se tratando de doença orgânica grave, consistindo em alterações anatômicas significativas (modificação, perda ou hiperprodução de tecidos). Esta doença terá sido diagnosticada pelos métodos mais seguros e considerada totalmente incurável aos olhos da medicina contemporânea;

- no caso de cura, tenham sido ineficientes todos os meios terapêuticos devidamente aplicados;

- no caso de cura, verifique-se a restauração dos órgãos ou tecidos lesados em espaço de tempo tão breve que possa ser considerado instantâneo;

- no caso de cura, não se tenha registrado o prazo ordinariamente necessário para a recuperação gradual da função lesada (a pessoa retoma suas atividades com naturalidade em tempo extraordinariamente pequeno);

- seja a cura duradoura, capaz de ser comprovada por exames sucessivos, feitos a intervalos regulares durante longo espaço de tempo;

- autênticas atitudes de fé (oração e humildade); os efeitos do “milagre” são confirmação dos homens na verdade e no bem, repúdio ao pecado, conversões à reta fé, paz na alma, concórdia e caridade entre as pessoas, fidelidade ao dever de estado, obediência à autoridade eclesiástica, etc.

4 Etapas da verificação de milagres

Existem questões decisivas e sucessivas na análise de um possível milagre. Realmente sucedeu esse fato prodigioso? Não existe uma causa natural para o fato? O agente do milagre foi Deus? Qual a mensagem que Deus quis transmitir?

Daí, pode-se dizer que são quatro as etapas para verificação dos milagres:
a) verificar a autenticidade do fato;
b) verificar a possibilidade de explicação científica (de parte das ciências físicas, químicas, biológicas, médicas ou psicológicas);
c) verificar a explicação teológica (explicação sobrenatural);
d) verificar o significado (o motivo da permissão ou realização do específico fenômeno).

Na primeira etapa, da verificação da autenticidade do fato, o rigor da análise quer excluir possibilidade de mentira, de boato, de fraude, de falsas recordações ou deformações da memória, de ilusões ou alucinações, da mitomania dos histéricos ou da interpretação delirante dos paranóicos, etc.

Na segunda etapa, constatado o fato, procede-se à investigação sobre possível causa natural. Intervêm as diversas ciências teóricas, experimentais ou aplicadas, de acordo com a natureza do fenômeno: física, química, biologia, medicina, psiquiatria, engenharia, astronomia, etc.

Na terceira etapa, o processo teológico, apela-se à Revelação e à Teologia. Tal etapa deve realizar-se apenas quando a anterior estiver decididamente esgotada em suas possibilidades. Ou seja, vai-se à causalidade sobrenatural, depois de eliminada a causalidade natural.

Na quarta etapa, do significado, quer-se descobrir o motivo da realização ou permissão, por parte de Deus, do específico fenômeno. Além da Revelação e da Teologia, há que estar atento às circunstâncias e às repercussões pessoais, comunitárias ou até mundiais do fenômeno. Evidente, enquanto sinais de poder que permitem captar a presença e a ação salvífica de Deus, os milagres não têm todos o mesmo valor. Existe entre eles uma graduação. O decisivo no milagre é sua significância salvífica. Traduzindo: “O que Deus quis com isso?”

----------------------------------------------------------
Fonte: Presbiteros.com


[1] R. LATOURELLE, Milagros de Jesús y Teología del Milagro, Salamanca: Sígueme, 1990. Id., “Milagre”, in: R. LATOURELLE; R. FISICHELLA (dir.), Dicionário de Teologia Fundamental, Petrópolis-Aparecida: Vozes-Santuário, 1994, p. 624-640. W. MUNDLE; O. HOFIUS, “Milagro”, in L. COENEN; E. BEYREUTHER; H. BIETENHARD, Diccionario Teológico del Nuevo Testamento, v. III, p. 85-94. J. A. SAYÉS, Compendio de Teología Fundamental, Valencia: Edicep, 1998, p. 157s, 179-182, 272-276, 279-304. F. OCÁRIZ; A. BLANCO, Revelación, Fe y Credibilidad, Madrid: Palabra, 1998, p. 388-392, 555-572. J. METZ, “Milagro”, in: Sacramentum Mundi, Barcelona: Herder, 1984, v. 4, p. 595-599. E. MARTÍN NIETO, “Milagro”, in: F. RAMOS, Diccionario de Jesús de Nazaret, Burgos: Monte Carmelo, 2001, p. 825s. L. PIMENTEL CINTRA, Ciência e Milagres, São Paulo: Quadrante, 1994. R. BAUMANN, “Milagro”, in: Diccionario de Conceptos Teológicos, Barcelona: Herder, 1990, v. 2, p. 69-80. C. IZQUIERDO URBINA, Teología Fundamental, Pamplona: Eunsa, 1998, p. 391-407. M. SCHMAUS, A Fé da Igreja, Petrópolis: Vozes, 1982, v. 1, p. 93-97. N. ABBAGNANO, “Milagre”, in: Dicionário de Filosofia, 2ed., São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 641.
[2] P. ex.: G. AMORTH, Un esorcista racconta, Roma: Dehoniane, 1990. C. BALDUCCI, La possessione diabolica, 9ed., Roma: Mediterranee, 1988. M. ELIADE, Tratado de História das Religiões, Lisboa: Cosmos, 1990. E. FRIEDRICHS, Onde os espíritos baixam, São Paulo: Paulinas, 1965. P. A. GRAMAGLIA, Espiritismo; dimensões ocultas da realidade, São Paulo: Paulus, 1995. G. HUBER, O diabo, hoje, São Paulo: Quadrante, 1999. W. KASPER et alii, Diabo, demônios, possessão, São Paulo: Loyola, 1992. B. KLOPPENBURG, Espiritismo e fé, São Paulo: Quadrante, 1990. Id., Espiritismo; orientação para os católicos, São Paulo: Loyola, 1986. Id., O Espiritismo no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1960. E. LA PORTA, Estudo psicanalítico dos rituais afro-brasileiros, Rio de Janeiro, 1979. R. LAURENTIN, Il demonio mito o realtà?, Milano-Udine: Massimo-Segno, 1995. V. MARCOZZI, Fenômenos paranormais e dons místicos, São Paulo: Paulinas, 1993. A. SCOLA et alii, Sectas satánicas y fe cristiana, Madrid: Palabra, 1998. A. STILL, Nas fronteiras da ciência e da parapsicologia, São Paulo: IBRASA, 1965. B. WENISH, Satanismo, Petrópolis: Vozes, 1992.

[3] Cf. Ilíada, II, 234; Odisséia, III, 173; XII, 394.
[4] Cf. PL 42, 879.
[5] Cf. PL 42, 90: “Miraculum voco quidquid arduum aut insolitum supra spem vel facultatem mirantis apparet”.
[6] Cf. PL 35, 1592.
[7] Cf. sobretudo em De potentia q. 6; S. Th. I, q. 105, aa. 6-8.
[8] S. Th. I, q. 105, a. 7, ad. 2.
[9] Cf. S. Th. II-II, q. 178, a. 1, ad. 1: “In miraculis duo attendi possunt: unum quidem est id quod fit, quod quidem est aliquid excedens facultatem naturae, et secundum hoc miracula dicuntur virtutes; aliud est id propter quod miracula fiunt, scilicet ad manifestandum aliquid supernaturale, et secundum hoc communiter dicuntur signa; propter excellentiam autem dicuntur portenta vel prodigia, quasi procul aliquid ostendentia”.
[10] Cf. Contra Gentiles III, c. 100.
[11] Cf. DS 3009.
[12] Cf. DS 3539.
[13] Cf. DS 3876.
[14] DV 4.
[15] LG 5.
[16] Dignitatis humanae 11.
[17] Cf. DV 2.

Diálogo com um ateu

Foi um encontro casual, em uma tarde, no alto do Cabo de Santo Agostinho, um penhasco na fímbria do mar, no extremo nordeste do Brasil. Voltando de uma longa caminhada pela mata, decidi descansar por alguns instantes no forte português abandonado, gozando a brisa fresca, nas sombras da tarde. Um homem de idade aparentando uns 60 anos, vestindo uma bermuda branca e uma camisa de seda azul que o vento agitava velozmente nas suas costas, estava sentado sobre um velho canhão. A peça de ferro, recém-pintada em preto luzidio, apontava para o horizonte na posição, talvez, de seu último tiro contra as esquadras holandesas.

Acercando-me do homem – provavelmente um turista de recursos, e uma pessoa excêntrica, por estar ali completamente só –, comentei, para iniciar uma conversa:

— As caravelas portuguesas disparavam salvas, quando passavam à vista deste cabo, para saudar a Nossa Senhora de Nazaré, que tem sua imagem na ermida junto ao farol...

Ele, que já me fitava, respondeu com vagar:

— Gastavam pólvora assim? Pobre gente! – disse. – Tipos supersticiosos, aqueles nossos avós. Corajosos no mar e ao mesmo tempo medrosos do destino; hoje somos escravos de crenças ridículas transmitidas por esses nossos ancestrais incultos.

— Não tem religião? – perguntei-lhe.

— Sou ateu, respondeu ele. – Mas não sou esse ateu comum, que nega sem pensar e sem refletir. Eu refleti muito para chegar à convicção de que Deus não existe.

— Sou católico – disse eu. — Ah!... Humm... A maioria é... – murmurou o ateu, observando-me enquanto eu me acomodava sobre a muralha, onde também coloquei minha mochila. Lá em baixo, as ondas avançavam com violência e estrondo sobre as rochas do penhasco, para recuar mansamente espalhando sua espuma branca entre labirintos de pedras negras. O céu ganhava tintas alaranjadas, reflexos do sol que se punha do lado oposto, oculto pela mata luxuriante. Tanto poder e beleza, não seria uma prova de que Deus de fato existe?

Era a primeira vez que eu falava com um ateu convicto. Encarei-o com um sorriso – para evitar qualquer suspeita de antagonismo da minha parte – e indaguei que razão tinha para não crer. Sua fisionomia permaneceu calma e amistosa, enquanto respondia:

― Acompanhe o meu raciocínio – pediu ele. – Se Deus existe, não poderia existir sem ter criado este mundo que conhecemos. E neste mundo predomina o mal, ele está cheio do mal. Portanto ou – primeiro –, Deus criou o mundo e também o mal que nele vemos, e então não é um deus perfeito; ou, – segundo –, criou o mundo e não tem poder bastante para afastar o mal, logo não é infinitamente poderoso; ou – terceiro –, colocou propositadamente o mal no mundo para nos afligir e, nesse caso, não é sumamente bom e misericordioso.

Ensaiei interrompê-lo para protestar, mas ele se me antecipou:

― Não me diga, como o seu filósofo Agostinho, que o mal não tem existência própria, e apenas significa a ausência do bem. Não concordo. Ele mesmo considerava como mal alguém agir contra as Tábuas da Lei. Portanto, o mal existe e pode ser praticado. Ora, se Deus criou o bem e o mal para ver qual dos dois vence na alma de uma pobre criatura, isto ainda é pior.

― Você falou de alma... Acredita que o homem seja corpo e espírito?

― Não acredito em almas, retrucou. – Apenas citava o seu filósofo. E posso dizer que, se existem almas e Deus perde uma delas, esta perda é um mal que atinge a Deus, e ser atingido pelo mal não vai bem com a idéia de perfeição e infinito poder. O que me diz?

― Posso facilmente responder-lhe, por partes, porque são duas as conseqüências de haver Deus dado ao homem a vontade livre. A alma somente é perdida quando exerce sua vontade para pecar. Seria uma contradição se Deus a impedisse de pecar, pois teria criado uma falsa vontade livre, e um falso livre arbítrio. Portanto, não é uma imperfeição de Deus que Ele perca uma alma.

― Mas, e o sofrimento? Um mundo que, como lembrou Voltaire, sofre tragédias como a de um grande terremoto, com perda de milhares de vidas, não é um mundo impregnado do mal?

― Ora! Você sabe que ele criticava o relativismo de Leibniz e de São Tomás, para os quais do mal podia resultar algum bem e neste caso o mal era bom. Mas eu vejo o mal por um ângulo muito diverso: ele em hipótese alguma é bom ou pode ser tolerado. Deixa-me dizer por quê: Deus criou as leis que regem o universo, as quais, seguidas à risca pela natureza, surpreendem os homens a todo instante e, quando as desconhecemos ou não podemos vencê-las, elas são a origem do sofrimento para nós. Porém, essas leis eram necessárias! Não seria possível a vontade livre se nada se movesse, se o mundo fosse rígido, imóvel; e também não seria possível exercê-la se, ao contrário, o mundo fosse completamente caótico.

Dito isto, pensei: se não existissem as leis naturais, os milagres também não aconteceriam!... – mas prossegui:

― Talvez o homem conhecesse perfeitamente essas leis naturais – esse conhecimento explicaria sua felicidade e sua pureza no Paraíso -, mas tenha perdido sua sabedoria devido a um primeiro pecado; não por praticar o mal, mas por orgulho...

― No paraíso?... – perguntou o ateu com polida ironia. Era evidente que a questão o interessava. Talvez não fosse um ateu tão convicto quanto acreditava ser.

― Sim – respondi-lhe –, e tem, na Terra, que lutar para redescobri-las, a fim de dominar a natureza, evitar o sofrimento, e reconquistar sua felicidade. Porém, quando descobre uma dessas leis, não a conhece completamente. Precisa procurar também os princípios dos quais ela deriva e chegar a princípios e leis anteriores, de modo que busca incessantemente as causas das causas. A ciência cada vez mais sente a necessidade de uma fórmula universal, um princípio que ela não possa desmontar e reduzir a outros princípios. Assim, a ciência, sem o saber, está procurando Deus, que é essa causa última.

― Aristóteles parece que foi o primeiro a falar de uma causa suficiente das coisas. Mas isto não é uma prova da existência de Deus – alegou o ateu. – Em todo efeito permanece alguma coisa do que foi a sua causa, e nas coisas do mundo não vemos nada que tenha pertencido a algo ou alguém senão ao mundo mesmo. Existem os princípios da física, os princípios da química, eles, sim, princípios perfeitos e eternos, leis imutáveis, indiferentes ao bem e ao mal.

― Não há nenhum vestígio de Deus no mundo por que Deus não se confunde nem é parte da coisa por Ele mesmo criada. Se você olha um quadro pintado a óleo, também não encontra nada do pintor, se ele não deixar seu nome escrito. Se você não quisesse acreditar na existência do pintor, você teria que supor que o pincel que deixou as marcas na tela seria a única razão do quadro existir. A ação do pincel estaria muito bem explicada pelos princípios da química e da física. Estes princípios lhe diriam, por exemplo, a força com que o pincel atingiu cada parte da tela. A disposição das linhas lhe permitiria descobrir as leis da estética aplicadas à pintura. Porém, a rigor, o quadro jamais lhe provaria a existência do pintor mais que as coisas do mundo provam que Deus existe.

O velho ergueu-se da ponta do canhão, bateu alguma poeira de sua bermuda branca e veio apoiar-se na muralha, fitando o mar. De perto, deu-me outra impressão. Talvez seu rosto não tivesse tantas rugas quanto seria de esperar devido à aparência alquebrada e gasta de sua figura. Já não lhe daria mais que uns cinqüenta e poucos anos de idade. Parecia disposto a continuar a me ouvir.

― Retornando à questão do bem e do mal, é quando cremos em Deus e na palavra revelada – continuei –, que podemos distinguir o que pode ser o verdadeiro bem e o verdadeiro mal para nós. Então se torna importante o problema da conduta moral. É incerto o que esperar de quem não tem Deus como referência moral!

― Não diga isso, por favor! protestou o ateu. – A filosofia pode nos fornecer regras para a boa conduta. Temos um dever natural que é usar nossa razão para fazermos somente o que for mais adequado, e fazê-lo segundo um raciocínio o mais amplo possível. Deus fica totalmente fora disto. Há, portanto, como ser um bom ateu desde criança – arrematou ele.

― Porém sem incluir Deus, o raciocínio não será cabalmente completo e abrangente, não será “o mais amplo possível” como você exige. Seria, como no exemplo que dei, raciocinar sobre um quadro sem levar em conta o seu autor. Afinal, quem fez o homem? Quem lhe deu consciência? Foram os princípios da física? Isto, sim! é impossível. E se você sabe que existe um Criador, você quer conhecê-Lo e ouvir Sua palavra.

Ambos falávamos sem nos exaltar – a serenidade em nosso diálogo permitia que fizessem parte do momento sensações várias que estimulavam nossa reflexão: a visão do mar azul, a brisa morna, o borrifo das ondas que vez por outra nos atingia sobre a muralha.

― Deixa-me devolver-lhe a pergunta – disse ele no mesmo tom bem humorado que mantivera em toda a conversa. – Você tem algum motivo que não aquele da “causa última das coisas” ou “porque fui educado na santa fé católica” e coisas do gênero, para acreditar em Deus?
Sua pergunta levou-me a sorrir.

― Sou um geólogo! – respondi. – O estudo da Terra leva qualquer um a refletir sobre um Criador. Imagina aqueles que estudam os astros!...

Foi só então que finalmente nos apresentamos, sem que ele dissesse muito a seu respeito. Apenas que era do Sul, estava num programa de turismo de grupo e que os companheiros haviam decidido ir até São José da Coroa Grande, e o apanhariam ali no retorno.

― Está hospedado na pensão? – perguntei-lhe. – Lá poderemos continuar a discutir o assunto, esperando pelo jantar. Talvez Dona Baixa nos ajude com alguma luz sobre a questão.

Descemos a senda do penhasco sem pressa, alcançamos o baixio que ia dar na praia norte e, pelo caminho entre os coqueiros, fomos nos acercando do aldeamento de pescadores, nos últimos momentos da luz da tarde. A pensão era um casebre um pouco mais amplo que os demais, numa posição privilegiada na longa fileira de choupanas, com um extenso coqueiral e a ampla praia bem à sua frente. Entre os coqueiros havia um pequeno coreto de paus roliços, com uma lanterna a gás pendurada no centro do teto de palha. No mar, as ondas rolavam sua longa faixa de espuma já sem brilho, em um vasto arco que atingia ao mesmo tempo as areias ao longo de toda a praia próxima e distante.

No trajeto havíamos conversado sobre os hábitos daquele povo simples e ao jantar, tendo o sulista se interessado pelo que lhe falei do meu trabalho, não retornamos ao assunto de nosso debate anterior.

À noite houve um ensaio de música para uma festa tradicional que estava próxima. Alguns músicos, sentados nos bancos toscos do coreto, tocaram pífaro e uma rabeca, e alguns pescadores cantaram versos ligeiros de muita rima, um canto meio gritado e aflito, até que as rodadas de cachaça reduziram o canto a conversas arrastadas e muito riso. Já havíamos nos recolhido aos nossos pequenos quartos quando as vozes cessaram e apenas o ronco das ondas vez por outra se fazia ouvir no silêncio da noite. No entanto, eram apenas 9 horas!

Na manhã seguinte, levantei-me cedo, e saí para fazer observações no penhasco e nas rochas vulcânicas circunvizinhas cobertas pela mata. Após um dia de trabalho, caminhando para oeste até onde principiava o canavial, e retornando pelo sul ao cair da tarde, foi com verdadeiro prazer que, depois de um mergulho no mar e um banho de caneco para retirar o sal, voltei a encontrar o ateu na pensão. Como eu, ele ia passar ainda uma noite no local.

Ao jantar, depois de trocarmos algumas palavras sobre o nosso dia, de prosearmos um pouco com Dona Baixa e saborearmos o seu pirão de peixe, voltamos ao assunto da véspera:

— Você ficou me devendo a resposta à minha pergunta – disse-me ele. – Além de uma conjectura sobre a “causa última”, ou do fato de ter sido educado católico, existe na verdade algo que o convença da existência de Deus? Nos distraímos com outros assuntos e você não chegou a expor suas razões.— Bem... Uma coisa que me impressiona muito são os milagres – respondi. – Eu os tomo como a principal, e talvez a única prova direta que se pode ter da existência de Deus, e também dos Santos, de Maria e de Cristo.

— Fale-me apenas de Deus – atalhou ele.

— Mas você certamente considera ridículo alguém acreditar em milagres...

— Oh, não! Não considero essa crença ridícula. Na verdade, porque a idéia da bondade infinita faz parte da idéia de perfeição, a um ser que fosse perfeito não poderia faltar o deixar-se provar concretamente. Se Deus existe como os judeus e os cristãos o idealizam, como um ser perfeito e misericordioso, negar Ele próprio a prova de sua existência haveria de contrariar Sua perfeição. Apenas não entendo porque os milagres seriam prova, uma vez que não passam de fatos mal interpretados, como está definitivamente demonstrado.

A conversa que iniciamos à hora do jantar, continuamos depois à beira da praia, sob a luz de intenso luar, sentados na borda de uma jangada deixada na areia ao pé dos coqueiros.

― Não seria possível provar Deus somente no campo físico, como se prova em laboratório a pressão dos gases, a dilatação dos metais. As provas da existência de Deus precisam ser buscadas onde a Sua natureza e a natureza do homem se tocam, ou seja, onde a espiritualidade e acontecimentos extraordinários ocorrem juntos. E também não seria possível essa prova, sem que fosse vontade Dele. E, para mim, os fatos que representam essa convergência das duas naturezas e das duas vontades são principalmente os milagres. Deus se deixa provar numa relação de sua vontade com a vontade humana, justamente quando concede o milagre. É uma relação íntima em que apenas o indivíduo que recebe o milagre tem absoluta certeza de que é um ato extraordinário em que Deus se manifestou, e somente para ele trata-se de uma resposta às suas súplicas e à sua fé.

Esperei por uma objeção que não veio. Meu companheiro, curvado e algo absorto, desenterrava uma pequena concha da areia. Vez por outra pequenos caranguejos emergiam de seus buracos e saíam a andar de lado; alguns se detinham para nos fitar.

Como o ateu nada dissesse, prossegui:

– Para me fazer mais claro, deixa-me dar um exemplo. Um colega meu, passando por um lugar ermo ao norte da serra da Bocaina, em Minas, soube de uma criança que fora mordida por uma cascavel. Tomou a criança dos braços da mãe e a levou em seu carro para um hospital distante algumas centenas de quilômetros, em tempo de salvar-lhe a vida. Ora, somente para a mãe da criança o acontecido foi um milagre em resposta às suas orações. Qualquer outra pessoa dirá que não foi nada de particular entre Deus e aquela mãe, e que foi apenas sorte.

― Então, Deus apenas manipula probabilidades?

― Não digo isso, mas, ainda que Ele intervenha e inverta a ordem natural, o milagre é sempre contestável, sempre é explicável como simples fenômeno físico, ou como um fenômeno psicológico ou simplesmente atribuível à sorte, a uma certa probabilidade estatística, como se nenhuma lei da natureza houvesse sido transgredida.

O ateu objetou:

– Mas o significado de Milagre é, sabidamente, o contrário do que você diz: de acordo com a palavra latina miraculum, é alguma coisa maravilhosa, que é evidente para todos.

― Perfeitamente! O indivíduo se maravilha e em grande emoção paga uma promessa difícil, quando ele ou a sua família recebem um milagre como clara resposta às suas preces.

― Mas teria que ser algo inquestionável, como um homem que não tivesse as duas pernas e de repente se apresentasse com elas! – impacientou-se o ateu. – Uma coisa assim jamais aconteceu... Que eu saiba!

― Veja! Se tal fato acontecesse, estaria claramente e perante todos violada a lei natural. Não sobraria para ninguém aquela margem de dúvida que, em minha opinião, caracteriza o milagre. O poder de Deus estaria claramente manifestado a todos, o que tornaria completamente dispensável uma fé previamente existente. Para acontecimentos assim, capazes de despertar a fé naqueles que não a têm, deveríamos reservar a expressão testemunho.

― O milagre – prossegui – resulta de uma súplica feita com fé, enquanto o testemunho é um ato espontâneo de Deus. O milagre é secreto; o testemunho, ao contrário, é público e precisa ser investigado. O milagre, mesmo quando pedido simultaneamente por muitos, é para cada pessoa um entendimento particular com Deus. O testemunho apenas raramente é dirigido a um só homem, como foi excepcionalmente no caso do apóstolo Tomé. Enquanto o milagre inunda de felicidade, o testemunho infunde respeito e temor.

― Fico surpreso! – disse o outro. – Os fatos que estão no chamado Novo Testamento, em que a natureza teria sido claramente contrariada, assim como Cristo caminhar sobre as águas ou elevar-se ao céu ou, no que é dito ser o Velho Testamento, a travessia do Mar Vermelho pelos judeus, são narrados como milagres.

― O filósofo David Hume faz uma crítica aos fatos bíblicos dessa natureza – respondi. – Mas lhe faz falta essa distinção que eu faço, entre milagres e testemunhos. Apesar de que ele se refere indistintamente às duas coisas, seu texto é dirigido mais ao “testemunho”, e neste caso está também São Tomás, de quem se pode ver que Hume tomou parte da sua definição de milagre.

― Entendo seu ponto de vista – disse o ateu. – Resumindo: não se prova a existência de Deus com a evidência própria do método científico, porém está ao alcance do homem encontrar essa prova de modo particular, nos milagres...

— E como todo aquele que procura tal prova com certeza a encontrará, ela tem a universalidade necessária a toda demonstração científica – completei sem vacilar.

A lua cheia trouxera a maré alta; franjas de espuma arrojavam-se aos nossos pés. A aldeia estava adormecida; já passava muito das nove horas!

Ergui-me, mas o ateu permaneceu sentado. Olhava o mar que se avolumava mais a cada onda, como se estivesse hipnotizado pela massa negra que agitava tentáculos para nos alcançar.

Surpreendeu-me o tom amargo de suas palavras quando disse, a voz embargada pela emoção:

― Sabe?... Eu e minha esposa nos separamos, por culpa minha! meus filhos não me perdoam. Viajo a fim de esquecer a coisa toda.

Ao ouvi-lo percebi, consternado e surpreso, que ele realmente sofria. Já o considerava um amigo. Diante do seu abatimento, esvaiu-se de súbito o meu entusiasmo pelas minhas teses.
Porém, forçado a ser coerente com tudo que havia dito, ainda lhe disse, hesitante: – Confie em Deus!

Ele baixou a cabeça e nada disse, talvez resignado a fazer uma concessão absurda.

Retornamos à pensão, passando pelos casebres brancos, fechados e silenciosos. A noite havia esfriado. A maré trouxera um vento frio; o farfalhar das palmas do coqueiral agora era mais forte e opressivo, e no céu a lua começava a ser oculta por farrapos de nuvens escuras que se moviam ligeiro para o continente.

*
Passado não muito tempo, tive notícias do meu amigo. Sobre a mesa em meu escritório, no Recife, estava um envelope com carimbo do Sul. Continha uma fotografia em que, bastante rejuvenescido, ele tinha um braço sobre os ombros de uma mulher, olhando-a com ternura, os dois ladeados por um casal de jovens, todos sorridentes.

No verso havia apenas uma frase: “Caro geólogo, anote este milagre!”

Por Rubem Queiroz Cobra


_____________________
NOTA: Este conto foi incluído corno complemento no livrode R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS e outros enredos psicotemáticos,Capítulo 7, p.87-98. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1.
Fonte: Cobra, Rubem Queiroz - Diálogo com um Ateu. Site www.cobra.pages.nom.br, INTERNET, Brasília, 2000. ("www.geocities.com/cobra_pages" é "Mirror Site" de COBRA.PAGES)