quarta-feira, 6 de agosto de 2008

As marcas da Igreja: Una, Santa, Católica e Apostólica

Ensina o Credo Niceno (aceito por todas as confissões de fé cristãs) que a Igreja é objeto de nossa fé. Repete-se, no mesmo, que cremos na Igreja. Entretanto não é qualquer igreja que é objeto da fé cristã. A Igreja, na qual se crê, tem marcas distintivas, como emblemas que a definem e qualificam.

A primeira destas marcas da Igreja é que ela não é múltipla, mas uma única Igreja, ela é Igreja UNA. Só existe uma Igreja: a Igreja de Jesus Cristo, ou a Igreja Cristã. A Igreja tem por marca a sua singularidade. Isso significa que as igrejas que conhecemos, com nomes variados (romana, grega, anglicana, luterana, presbiteriana, batista, metodista...) são denominações e não Igreja, no sentido teológico do termo e que, por isso, não são objetos de nossa fé. Ninguém deve crer na igreja católica, ortodoxa, episcopal etc.

A Igreja não é somente singular, mas também unida. Este é o sentido de Igreja Una. É uma só e unida Igreja. As muitas caras da Igreja (as denominações) e que desembocam, tantas vezes, em grupelhos que alimentam até ódio religioso são, na verdade, a negação da Igreja. Isso significa que a unidade da Igreja não está em suas doutrinas particulares (estas, estabelecem as diferenças), mas em Cristo que morreu pela Igreja. Cristo é o centro da unidade da Igreja e a razão de sua singularidade. Afirma Calvino sobre a Igreja que: Onde quer que vemos a Palavra de Deus ser sinceramente pregada e ouvida, onde vemos serem os sacramentos administrados segundo a instituição de Cristo, aí de modo nenhum se há de contestar está a Igreja de Deus (Institutas, IV, I, 9).

A Igreja é una, visto que a ela tem uma missão só. Ela não tem muitas tarefas, muitas obras, muitas missões. Ser Igreja é que é a missão. Ela recebeu esta missão do Senhor: ser instrumento de Deus na implantação do Seu Reino, ou seja, fazer com que a criação chegue ao alvo determinado por Deus: a redenção! Os frutos deste Reino: paz, amor, justiça, fé, esperança, entre outros mais, são modos distintivos da missão da Igreja. Assim, a missão, base da unidade da Igreja, não é fazer proselitismo (roubar gente de outras denominações para a "nossa igreja"): isso é trabalhar contra a unidade da Igreja. A Igreja é que é a missão assumida pelos eleitos que sabem ser ela instrumento de Deus neste mundo para levar a cabo os propósitos de Deus para a Sua criação.

Ser fiel à pregação da Palavra e à ministração dos sacramentos é, em última análise, permanecer na luta pela libertação deste mundo. Pois esta é a sua preocupação: anunciar o Evangelho que promove a justiça, a paz, o amor, a fé, a esperança.

A segunda destas marcas da Igreja é que ela é santa. Isso significa dizer que ela é separada deste mundo. Realmente este é o significado de Igreja (e k k l e s i a = e k (preposição, deu origem ao sufixo latino "ex", "de fora") + k a l e w (verbo "chamar", numa tradução literal do termo teríamos: "chamados de fora"). Esta é a santidade da Igreja: ela foi chamada por Deus para servi-lo. Este serviço, que se origina do chamado de Deus, é a santidade da Igreja.

Santa, neste caso, não pode ser visto de modo meramente moral (sem pecados ou maldades – neste sentido, somente Deus é Santo, ou seja, sem pecado). A santidade da Igreja é o seu serviço: ela está a serviço do Deus que é Santo. Quem quiser encontrar santidade na Igreja olhando para os membros da Igreja e reparando como eles são "santos", certamente terá uma grande decepção.

A Igreja presta este serviço a Deus no mundo. Ela é separada para servir a Deus e não separada do mundo para ser de Deus. Ela é separada para servir a Deus dentro deste mundo. Se julgar que sua santidade é o seu afastamento do mundo, na verdade afastar-se-á do lugar do serviço de Deus e, por isso, servir-se-á e não ao Deus que a convocou, perdendo, assim, a santidade para qual foi chamada. Este é o ser da Igreja: servir a Deus no mundo. As tarefas realizadas pelas comunidades, em situações históricas diferentes e diante dos desafios das várias e diferenciadas situações, tem como princípio, meio e fim o serviço a Deus.
Isso significa dizer que a Igreja não faz evangelização, atendimento aos necessitados, publicações, cultos dominicais, e seja lá mais o que fizer, a não ser dentro desta perspectiva de sua santidade. Razão porque o Novo Testamento conhece e reconhece que o Culto de Deus é o Serviço de Deus: servir e cultuar a Deus são uma e a mesma coisa. Pode-se, pois, afirmar, com plena convicção, que o culto prestado pela Igreja ao Seu Deus está na vida de serviço que tem.

Isto, porém, não é um "esforço" da Igreja. A sua santidade foi conquistada e é realizada em Cristo: Jesus Cristo é quem apresenta a Igreja, diante de Deus, como santa, inculpável, irrepreensível, sem ruga, sem marca. E, assim como Seu Senhor, a Igreja serve ao Pai no serviço que presta à humanidade neste mundo, lutando pelo amor, a paz e a justiça.

O Espírito, que é Santo, é quem garante a unidade e comunhão desta Igreja, reunindo-a no mundo para proclamar as virtudes d’Aquele que a tirou das trevas para a Sua maravilhosa luz. Ao, pois, dizer que deve-se depositar confiança (cre) na santa Igreja, afirma-se o amor que Deus tem por esta Igreja, chamando-a, separando-a, vocacionando-a, purificando-a dos seus pecados e dando-lhe comunhão para que seja o "plano-piloto" do seu Reino em meio a este mundo.

A terceira destas marcas da Igreja é que ela é católica. Este é um termo que, lido assim, parece referir-se à Igreja Romana. Pode até ser que sim, mas não só! O termo quer dizer Universal. Mas este é outro termo problemático hoje em dia, pois pode parecer que se está falando da Igreja Universal do Reino de Deus. O termo quer dizer Ecumênica. Mas isso também traz muito problema na maioria das comunidades cristãs.

Primeiramente deve-se destacar que ao falar-se católica não se está pensando quantitativamente, mas qualitativamente. A Igreja não é católica porque é grande, imensa, quantitativamente, espalhada por toda a face do planeta (embora, a bem da verdade, isso seja ótimo!). Se de um lado o termo que dá emblema à Igreja, católica, quer dizer Igreja "abrangente", isso significa, também, Igreja "integral". A Igreja que é objeto de nossa fé não é propriedade de um povo, uma raça, uma nação, de uma classe social, de um segmento etário ou de um dos sexos.

A Igreja destina-se à todos, assim como a salvação em Cristo, objeto central, fundamental e principal da Igreja. Ela transcende as barreiras que dividem a humanidade, sejam fronteiras, sejam governos, partidos, culturas, raças, sexos, classes sociais. Por isso, a Igreja afirma a sua catolicidade na medida que trabalha sempre para derrubar as barreiras criadas pelos homens e que acabam gerando discriminações as mais variadas.

Vê-se, pois, que a questão fundamental que envolve a catolicidade da Igreja é, antes de tudo uma questão qualitativa e que, como conseqüência, acaba por atingir a via quantitativa. Porém, mesmo antes, no início, quando a Igreja era um minúsculo movimento recém saído do judaísmo e constituída de poucas raças e seguimentos sociais, mesmo ali era ela católica, pois apontava seus esforços na direção de todas as nações, de todos os povos, de todas as pessoas e lutava, ainda que pobre e sem poder, contra as barreiras que separavam os seres humanos.

A Igreja, é claro, é a expressão do amor de Deus, revelado na Sua eleição. Entretanto, a Igreja em sua militância não tem como determinar os eleitos, mas somente anunciar a todos o Evangelho do amor de Deus em Cristo: A saber: que Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo (Paulo). Por isso a Igreja insere-se em todas as culturas, em todos os espaços humanos, para trazer a mensagem transformadora do Evangelho de Deus em Cristo.

A quarta destas marcas da Igreja é que ela é apostólica. Este é o fundamento sobre o qual se ergue a Igreja. Aprendemos isso no N.T.: Jesus Cristo é a Pedra Angular que sustenta o edifício; o fundamento é o testemunho, a doutrina, o ensino apostólico; as colunas são os ministérios da Igreja; e, todos nós, as pedras vivas. Deus não tem, nem reconhece, nenhum outro templo onde habitar.
Foram os apóstolos de Jesus Cristo, fundadores da Igreja, que edificaram a Igreja. Por isso receberam o ofício das chaves, ou seja, as "chaves da Igreja", pois a Igreja é, antes de tudo, apostólica. Ela não é de uma pessoa, de um bispado que se prolonga em linha de continuidade, não é propriedade de uma raça, uma nação, um grupo, uma denominação.

Isso significa que na Igreja não se acredita no que se tem na cabeça, como se a fonte de nossa fé fosse somente a nossa exclusiva relação com Deus. Nossa relação com Jesus Cristo, sua doutrina, seus ensinos, suas intenções santas, estão relacionadas aos apóstolos. Ora, o ensino apostólico encontra-se nas Escrituras Sagradas do Novo Testamento, assim, as questões doutrinárias de fé, de prática e de consciência devem estar coerentes com o ensino dos santos apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo.

Esta é a única autoridade da Igreja: ser apostólica. Ela fala com autoridade porque fala conforme os apóstolos. Porém, e mais importante, ela age com autoridade porque age conforme agiram os apóstolos. Ela dá testemunho apostólico e exemplo apostólico. Os ministérios da Igreja estão sob uma ordem: a ordem apostólica. Por isso, quer na palavra (pregação sobre a obra redentora de Jesus Cristo), quer nos sacramentos (apresentação da obra redentora de Jesus Cristo), a Igreja segue os apóstolos e, assim, e somente assim, podemos falar com toda a tranqüilidade em sucessão apostólica (que nada tem haver com episcopado monárquico).
A Igreja vive dessa seqüência (de seguir, ou suceder) aos apóstolos. Isso significa que de um lado ela preserva, guarda, defende o que recebeu por herança dos apóstolos, persevera naquilo que deles aprendeu. De outro, na imitação de suas práticas, a Igreja renova e inova, recriando nos diferentes contextos da história e da geografia deste mundo (ela é católica) a prática libertadora, purificadora, santificadora, dos apóstolos de Cristo. Na pobreza e simplicidade apostólicas a Igreja estende ao mundo a mão abençoadora de Jesus livrando os homens das garras do mal, da opressão, das injustiças e do diabo.

Aprendemos com João Calvino que "onde quer que vemos a Palavra de Deus ser sinceramente pregada e ouvida, onde vemos serem os sacramentos administrados segundo a instituição de Cristo, aí, de modo nenhum, se há de contestar, está uma Igreja de Deus..." (Institutas, IV, I, 9). Isso significa que, por esses sinais identifica-se a Igreja.

A Igreja, por ser apostólica, tem como sinal claro a pregação apostólica, ou seja, conforme ensinaram os apóstolo. Tudo o que deveríamos conhecer e saber foi-nos dado por Deus, através dos santos apóstolos, na Escritura Sagrada. Por essa razão, este sinal da Igreja (a correta pregação da Palavra de Deus) está ligado à sua marca preponderante (ser a Igreja apostólica).

A Palavra de Deus deve ser pregada sinceramente. Este é um termo muito cheio de significado: sincero quer dizer sem cera. As ceras eram usadas para esconder rachaduras em vasos por comerciantes que desejavam enganar os consumidores. A correta pregação da Palavra não esconde a verdade, antes a coloca claramente aos ouvintes. Por isso, parte dessa marca não é somente a sincera pregação, mas a correspondente escuta da mesma. Na Igreja a Palavra deve ser acolhida, quando pregada na linha apostólica e com sinceridade, de modo manso e obediente. Por isso diz Tiago: Acolhei com mansidão a Palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar as vossas almas (1:21).

Vê-se, pois, que a pregação e o acolhimento da Palavra de Deus são indiscutíveis sinais da Igreja de Jesus Cristo. Mas o que Calvino quer destacar é que não é somente um mero falar e um mero ouvir. Não é uma questão de comunicação somente. Está implícito que este falar e este ouvir correspondem a um praticar. Considerando que na tradição calvinista o único intérprete fiel da Palavra é o Espírito Santo, pois é Ele quem nos revela a Cristo e aplica os benefícios da graça ao nosso coração, a aplicação da Palavra de Deus ao coração do cristão é obra eficaz do Espírito Santo. Conseqüência disso é a prática desta Palavra: Tornai-vos, pois, praticantes da Palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos (Tg. 1:22).
Neste sinal fala-se de duas submissões: do ministro no falar e da comunidade no ouvir. Ambos, como sinal da Igreja, quer no anunciar, quer no ouvir e praticar, devem estar submissos a Deus que opera, pela Palavra, através do Espírito Santo. A Igreja de Cristo está submissa à Palavra de Cristo, pois é a Igreja Apostólica, unida no poder do Evangelho, santificada pelo Espírito que a consagra para si.

A Igreja, por ser apostólica, expressa como seu claro sinal, conforme o ensino de Jesus que nos advêm destes mesmos apóstolos, os Santos Sacramentos. Este é um termo latino, tradução do termo grego bíblico mysterion (m u s t h r i o n ). Este termo, na Bíblia, é usado para descrever todas as coisas ou sinais que representam sublimidades espirituais.

A pregação da Palavra de Deus nos orienta a fé e a conduz às verdades de Deus, os Sacramentos, foram instituídos por Deus para o mesmo fim. Eles consistem em um sinal externo mediante o qual o Senhor sela a nossa consciência com as verdades eternas de suas promessas (que outra coisa não é senão a Sua bondade para conosco), para sustentar a debilidade de nossa fé e nos fortalecer nas promessas de Sua Palavra. Seria como que um modo de calcar e recalcar as verdades do Evangelho de Jesus Cristo em nosso coração tardo e néscio para compreende-las.

Na pregação da Palavra de Deus existe um sinal externo (a Escrituras Sagradas), nos Sacramentos há, também, um sinal externo (que é o elemento material neles usados – água, pão e vinho). Como a Palavra de Deus nos promete a boa e misericordiosa graça de Deus, os Sacramentos também não existem sem uma promessa que os fundamente e garanta. Por isso, Calvino, ensinando sobre o Sacramento, diria que o mesmo é a Palavra visível (...) Destrate, certo é serem-nos pelo Senhor oferecidos a misericórdia e o penhor de Sua graça tanto por Sua sagrada Palavra, quanto pelos Sacramentos (Institutas, IV, XIV, 6 e 7).

Assim como na Palavra torna-se necessária a fé para que a sua mensagem seja compreendida e apreendia, nos Sacramentos, também, sem a fé de nada aproveitam. Não há outro modo de atuação da graça de Deus, que nos é apresentada na Sua Palavra, a não ser pela fé. Assim, também, a graça de Deus, que nos é apresentada nos Sacramentos, torna-se eficaz e eficiente no coração que tem fé. Como a fé é um dom de Deus aos eleitos, deve-se afirmar, com toda a certeza, que os Sacramentos de Deus são oferecidos, somente, aos Seus eleitos que já foram despertados pelo dom da fé.

Assim como a atuação da graça de Deus torna-se eficiente ao coração que a recebe por fé, somente por meio do Espírito Santo, também, o Sacramento, somente pela atuação poderosa do Espírito Santo, aplicando-nos os benefícios apresentados no Sacramento, torna-se eficaz na vida do crente. Por isso, os Sacramentos confirmam a Palavra Deus, pois, representam a Cristo e nos apresentam a Sua graça bendita, no poder do Espírito.

Outro sinal fundamental da Igreja de Cristo é a sua disciplina. Tal disciplina está relacionada à sua fidelidade à Palavra de Deus. Razão porque nós, presbiterianos, ao recebemos um membro à comunhão de nossa fé exigimos fidelidade à disciplina às autoridades constituídas para seu governo enquanto forem fiéis à Palavra de Deus.

Infelizmente este termo tem sido muito mal interpretado dentro da Igreja, confundindo-se disciplina com castigo e governo com autoritarismo. Mas disciplina tem muito mais a ver com ensinar, educar, corrigir do que com julgar, condenar e punir. Veja-se, por exemplo, o verbo grego que traduzimos por exortar. Pode parecer a alguns que seu sentido seja "chamar a atenção" no sentido de "passar um ‘sermão’", o que nada se coaduna com o significado do termo.

Exortar vem do verbo grego p a r a k a l e w (parakaleo), que é a junção da preposição p a r a (para = do lado, ao lado, junto de) e do verbo k a l e w (chamar), literalmente, significa chamar ao lado, ou chamar para ficar ao lado. A idéia seria um apelo, ou rogo para estar ao lado, estar no mesmo caminho, estar junto. Por esta razão ele é traduzido por pedir, convidar, rogar, consolar, encorajar. Esta não é outra senão a missão do Espírito Santo, que foi denominado por Jesus de outro Õ a r a k l h t o s (parakletos) ou seja Consolador.

Disciplinar, neste sentido, significa ficar ao lado de alguém, instar, ensinar, encorajar, dar o suporte e o amparo necessários para que não haja quedas, ou tropeços, ou desvios do caminho. Isso nada tem a ver com julgar, punir, condenar. Antes é um chamado à Igreja se responsabilizar pela educação, correção, orientação pedagógica e pastoral de todos os seus membros. Destarte tem mais ligação com misericórdia, amor, consolo e animação. Por esta razão Paulo exorta "através de Cristo", "por meio de Cristo", "na misericórdia do Senhor" (Rm. 12:1), "pelo amor do Espírito" (Rm. 15:30), por meio da "mansidão e da benignidade de Cristo" (II Co. 10:1).
Em Paulo o termo é o oposto de tribulação, sofrimento, morte (I Co. 1: 3-11). Razão porque prometeu Jesus que os que choram, receberiam consolo (Mt. 5:4). Não é outra a disciplina da Igreja senão curar, educar, assumindo o lado do outro, entrando no seu caminho para lhe endireitar as veredas. Julgar, condenar e punir gera tribulação, sofrimento e dor e nada tem que ver com o consolo amoroso do Espírito.

Vê-se, pois, que a primeira Igreja, descrita pelo autor do Livro dos Atos dos Apóstolos, a destacar o modo apostólico de viver-se Igreja, que a mesma "perseverava na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações" (At. 2:42). O ensino apostólico (didaskalia), a comunhão que gera e produz unidade (koinonia), o repartir do alimento e dos bens (diakonia) e a vida de culto onde ouve-se a Palavra e fala-se com o Senhor da Igreja (liturgia), eram as características da Igreja de Cristo. A Igreja de Cristo está, pois, fundamentada na Palavra, nos Sacramentos e na Disciplina, garantia de sua unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade.


Por: Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Oração ao Nosso Senhor Jesus Cristo

Ó Senhor de grande misericórdia e de suprema compaixão, Jesus Cristo, meu Deus, que pelo Teu amor infinito desceste e Te encarnaste para salvar a todos. Eu Te peço, ainda uma vez, ó Salvador, salva-me por graça. Posto que se me salvas em virtude de minhas obras, não é mais graça nem dom, antes dívida. Eis que Tu próprio disseste, ó meu Cristo, grande em ternura e inefável em misericórdia: quem crê em Mim, viverá e jamais verá a morte. Se então a fé em Ti salva os desesperados, eu creio: salva-me, pois Tu és o meu Deus e Criador. Seja-me a fé contada no lugar das obras, ó meu Deus, pois não encontrarás nada para justificar-me. Que esta minha fé possa as substituir, responder em meu favor, justificar-me e revelar-me como participar à Tua glória eterna; que Satanás não se apodere de mim e nem se vã-glorie, ó Verbo, por tomar-me de Tuas mãos e de Tua salvaguarda. Querendo eu ou não, salva-me, ó Cristo meu Salvador, apressa-Te pois estou em perigo, Tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe. Torna-me digno, Senhor, de agora Te amar tal como outrora amava o pecado, e que eu novamente Te sirva sem negligência como dantes a Satanás. Eu Te servirei cada vez mais, Senhor e Deus meu, Jesus Cristo, a cada dia de minha vida, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.

Fonte: http://ortodoxia-brasil.blogspot.com/2007/10/orao-ao-nosso-senhor-jesus-cristo.html

sábado, 2 de agosto de 2008

Adoração na igreja evangélica contemporânea

Há dois tipos de música, a boa e a ruim — seja ela erudita, MPB, sertaneja, reggae, rap, rock ou gospel. O que me surpreende é a capacidade de o mercado absorver a música ruim. Com a proliferação de compositores, intérpretes, bandas e gravadoras, o cenário evangélico não poderia ser diferente. Tem música boa, mas também tem muita música ruim.

Passamos séculos louvando a Deus com hinos históricos da Reforma. Bastava um hinário, e tínhamos músicas com letras densas, boa teologia e linha melódica harmoniosa.

Nos últimos anos surgiu o que chamamos de louvorzão. Jogamos fora os hinários, a liturgia, aposentamos o piano e o coral e introduzimos a guitarra, a bateria, o data-show, as coreografias e a aeróbica. Surgiu também a figura do dirigente de louvor, responsável por animar a congregação. Daí para a frente há muito barulho, muitas palmas, muitas mãos levantadas, muitos abraços, muitas caretas e cenho franzido. Mas a pergunta que fica é: temos adoração?

O lado positivo do louvorzão é o interesse e a integração na igreja de milhares de jovens. Trata-se de uma oportunidade única para ensinar estes jovens, através do exemplo e da Palavra, o caminho do discipulado de Cristo. Mas fica a pergunta: estarão estes jovens crescendo na santidade e no serviço?

Alguns cultos se tornaram verdadeiras produções dignas da Broadway. Músicos profissionais, cenários, bailarinos e iluminação. Mas fica uma pergunta: toda esta parafernália cênica tem levado o povo de Deus a uma genuína adoração?

A história da Igreja é rica em manifestações artísticas. Ao longo do tempo o louvor foi expresso através de várias expressões musicais. O canto gregoriano, o barroco, os hinos da Reforma, o negro espiritual e os cânticos contemporâneos deixaram sua contribuição à boa música ao longo destes últimos séculos.

Trata-se, portanto, de um equívoco jogar fora toda a herança histórica e achar que esta geração descobriu a forma certa de louvar. Se olharmos do ponto de vista musical veremos que a história nos legou uma herança preciosa. Na cultura gospel do louvorzão tem muita música ruim, muita letra questionável e muito dirigente de louvor que mais parece um animador de auditório.

A igreja pode ser a ponte entre as gerações, entre o antigo e o novo e integrar na adoração tudo o que há de bom na sua herança histórica. Tem muita gente cansada do louvorzão barulhento de letras rasas, de bandas que tocam no último volume, de coreografias esvoaçantes e de ordens do dirigente para abraçar o irmão da frente, de trás e do lado dizendo que o amamos. É constrangedor abraçar alguém e dizer que o amamos quando nem sequer o conhecemos.

A igreja perde quando a ênfase do louvor se desloca da congregação para o palco. Com raras exceções a música é ruim, a letra não tem nada a ver com a realidade do cotidiano ou a teologia reformada e a performance no palco é apelativa.

A igreja perde quando se torna parecida com um programa de auditório e já não cultiva a boa música com cordas, sopros, bons arranjos, corais, quartetos. E perde muito mais quando a adoração se torna um evento estimulado sensorialmente e não uma melodia que emerge de um coração quebrantado e temente a Deus. Adoração é sempre uma resposta humilde, alegre, reverente àquilo que Deus é e faz. Adoramos porque algo aconteceu, algo nos foi revelado, e não o contrário, como pensam alguns, que recebemos a revelação e as coisas acontecem porque adoramos.

A igreja perde quando não há reverência ou temor. O que resta é euforia, excitação e sensações prazerosas. O que é bom em si mesmo, mas não é necessariamente adoração.

É um equívoco pensar que Deus se impressiona com nossos cultos de domingo. Antes, ele acolhe muito mais nossos gestos simples do cotidiano, fruto de um coração humilde e quebrantado, que busca se desprender de ambições e serve ao próximo com alegria. Adoração não é um evento domingueiro bem produzido, mas um estilo de vida que glorifica ao Senhor.

Durante séculos a arquitetura das igrejas e das catedrais destinou o balcão posterior ao coro, ao órgão e à orquestra. Na igreja da Reforma os músicos e o coro se posicionavam na parte da frente da nave, mas sempre ao lado. Mesmo o púlpito não estava no centro, mas ao lado. No centro havia, quando muito, alguns símbolos da fé, que ajudam a despertar a consciência para a experiência do sagrado, com destaque para a mesa do Senhor. A congregação ficava em face ao altar de Deus, sem que nada se interpusesse entre a Santa Presença e a congregação. Este lugar só pode ser ocupado por Jesus Cristo. Ele é o único mediador, ele é o único que pode dirigir o louvor.

Hoje o que se vê é o apóstolo, o bispo, o pastor, o dirigente de louvor e a banda ocupando este lugar, nos levando de volta à Antiga Aliança, quando sacerdotes e levitas eram mediadores entre Deus e os homens. A conseqüência é uma geração de crentes que dependem de homens, coreografias e data-shows para adorar e para ouvir a voz de Deus.

O verdadeiro pastoreio consiste em ajudar homens e mulheres a dependerem do Espírito Santo para seguirem a Cristo, que os leva ao seio do Pai. Ajudar homens e mulheres a crescerem e amadurecerem na fé, na esperança e no amor, integrando adoração, oração e leitura das Escrituras no seu cotidiano.

A contextualização se tornou uma armadilha na qual a igreja caiu. Na tentativa de se identificar com o mundo ela ficou cada vez mais parecida com ele. A cultura gospel é autocentrada, materialista, acha-se dona da verdade, tornou-se uma religião que nos faz prosperar, que não nos pede para renunciar a nada e que resolve todos os nossos problemas. Há um abismo colossal entre a cultura gospel e o evangelho de Jesus Cristo, que nos chama a amar sacrificalmente o nosso próximo, a cultivar um estilo de vida simples, a integrar o sofrimento na experiência existencial e a ter a humildade de ser um eterno aprendiz.

Estas reflexões já estavam fervilhando no meu coração há algum tempo. Pensei que estas coisas só aconteciam em certas igrejas, mas o que me motivou mesmo a colocá-las no papel foi ter participado de um culto numa Igreja Batista da Convenção.



Autor: Osmar Ludovico da Silva (pastor da Igreja Evangélica Comunidade de Cristo em Cabedelo, PB), ministra cursos de espiritualidade cristã, formação de líderes e restauração para missionários.

O Anglicanismo e sua Liturgia

A beleza e a ordem nascem do coração de Deus, que concede ao ser humano a inata sensibilidade estética, que pode ser aperfeiçoada com a educação. Daí o mandato cultural à humanidade incluir o desenvolvimento da Arte, em suas diversas expressões (plásticas, dramáticas, musicais etc.). A Arte Sacra tem sido aspecto central das manifestações culturais em todas as épocas. Ela destina-se a glorificar a Deus e aproximar o ser humano do Sagrado.

Deus, nosso Pai, na Primeira Aliança, comunicou todos os detalhes da construção do Santuário: arquitetura, decoração, móveis e utensílios, e as próprias vestes dos sacerdotes. O templo, construído por Salomão, além da sua funcionalidade para o Culto e o Sacrifício, era marcado por sua beleza, dedicado a Deus, o Sumo Belo, e o Criador da Beleza. A feiúra, a inestética, o não-belo, em todas as suas expressões, é um resultado do pecado, e a plena beleza, como no Jardim do Éden, será restaurada, após o Juízo Final, na Nova Jerusalém.

A Arte Sacra, elaborada por corações contritos, é forma de adoração: os templos, as cerimônias, os ritos ali realizados são Liturgias (no original leitourgia = trabalho do povo). Todas as igrejas, de todas as correntes, são litúrgicas, valorizando ou não a História, com maior ou menor elaboração, conteúdo, nível estético ou doutrinário. As chamadas “liturgias improvisadas” são tão cristalizadas quanto qualquer outra, pois se pode prever cada passo do “improviso” .

Apesar das perseguições do Império Romano, a Igreja Primitiva adotou símbolos, como a cruz e o peixe, e elaborou formas de culto, especialmente para a celebração dominical do Sacramento da Ceia do Senhor. Pode-se verificar esse fato na Carta de Clemente Romano aos Coríntios, ainda no final do primeiro século, e, no segundo século, em textos como o Didaquê, a Carta de Plínio ao Imperador Trajano, e o texto de Justino, o Mártir, sobre o Culto Dominical. No terceiro século, os textos de Hipólito e Cirilo já explicitam Ritos Eucarísticos plenamente elaborados, com as diversas partes que adotamos hoje. No Oriente, as Igrejas Pré-Calcedônias vão adotar o Rito atribuído a Tiago, o irmão do Senhor, e as Igrejas Bizantinas, o rito atribuído a João Crisóstomo. No Ocidente, durante a Idade Média, vão surgir, influenciados pelas culturas regionais, dentre outros, os ritos Romano, Galicano e de Sarum (este na Inglaterra).

Com a Reforma Protestante, foi no Luteranismo onde se expressou uma maior preocupação estética, com a preservação dos antigos templos, e a reelaboração de Símbolos, Cerimônias e Ritos, mantidos em sua beleza histórica, porém expurgados dos desvios doutrinários surgidos na Igreja de Roma no período anterior. A posição Luterana foi: “Devemos manter tudo aquilo que a Igreja Cristã elaborou, e que não se choque com a Palavra de Deus” . O Anglicanismo – como parte da mesma Primeira Reforma – seguiu a orientação Luterana. Isso contrastava com radicalismos encontrados entre Calvinistas: o culto como “quatro paredes caiadas e um sermão” , ou entre setores Anabatistas, que, adotando a incorreta teoria da “apostasia geral da Igreja” , negava toda criação de quinze séculos, e pretendia uma ahistórica reconstituição idealizada da Igreja Primitiva. Lutero sai do seu exílio, onde estava traduzindo a Bíblia, para combater a Iconoclastia (destruição das obras de Arte Sacra) empreendida pelo extremista Carlstad . O radicalismo iconoclasta surge sempre da generalizada identificação entre Arte Sacra e Idolatria, que não tem base nem no Judaísmo, nem no Cristianismo, mas que vai se instalar no Islamismo, e em setores do Protestantismo posterior.

Apesar da importância do trabalho teológico de um Richard Hooker , e do conteúdo doutrinário dos XXXIX Artigos de Religião, o Anglicanismo, pelo gênio do Arcebispo Thomas Cranmer , coloca nossos princípios doutrinários na Liturgia popularizada do Livro de Oração Comum (LOC), dando lugar à compreensão, entre nós, do “Lex Credendi, Lex Orandi” , confessamos aquilo que oramos. O Livro de Oração Comum teve várias edições, refletindo um período de instabilidade política da Inglaterra (com governos protestantes – anglicanos e presbiterianos – e católicos romanos): 1549, 1552, 1559, 1604, e, finalmente, 1662, adotada desde então. O objetivo do Livro de Oração Comum foi sistematizar e simplificar um conjunto de liturgias históricas reformadas no vernáculo, colocada nas mãos do clero e do povo.

O Livro de Oração Comum de 1662 foi o único adotado pela Igreja da Inglaterra dos séculos XVI a XIX, em todo o mundo, com profundas influências em outras denominações. Com o surgimento da Comunhão Anglicana, no século XIX, cada Província viria a adotar sua própria versão do LOC, além de ritos complementares ou alternativos, mantidos a estrutura e a doutrina originais. O Conselho Consultivo Anglicano (ACC) tem orientado como princípios para essas reelaborações: a) a fidelidade às Sagradas Escrituras; b) a flexibilidade pastoral; c) a Inculturação; d) a Inclusividade/Ecumenicidade

No Brasil, um excelente trabalho foi empreendido por nosso segundo Bispo, Dom Thomas , resultando no LOC brasileiro de 1930, contendo: Calendário e Lições para o Ano Cristão, Batismo, Matrimônio, Ofícios de Sepultura, Oração Matutina, Oração Vespertina, Ceia do Senhor, Saltério, Ordinal (Ordenações de Diáconos, Presbíteros e Bispos), Catecismo, XXXIX Artigos de Religião, fórmulas para os cultos domésticos e orações especiais para festas (como a Quaresma) ou ocasiões (como visita a parturientes ou enfermos). Ou seja, um LOC completo, que foi respeitado e amplamente popularizado.

Do Prefácio daquela edição, lemos: “Da Igreja da Inglaterra recebeu a nossa Igreja-Mãe o bom depósito da Fé uma vez confiada aos santos” , e dessa origem remota, que vai entroncar nos tempos apostólicos, é que, através de quase vinte séculos de milícia, o devocionário cristão chegou até nós como um tesouro de incalculável valia. Desse precioso legado esta Igreja herda e seleciona o seu ritual, escoimada a velha liturgia de tudo aquilo que possa colidir com a Palavra de Deus, ou impedir a Igreja de correr, no grande estádio da vida moderna, a carreira que lhe está proposta perante uma tão grande nuvem de testemunhas. E, ainda: “Exuberante prova do espírito construtivo e conservador desta Igreja é fornecida por este Livro nas belas instruções que ministra sobre a Doutrina da Santíssima Trindade, a salvação pela Fé em Cristo, o ensino bíblico sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria e os Santos Apóstolos e Mártires, a confissão a Deus, a necessidade de arrependimento, os sacramentos administrados pela forma prescrita nas Santas Escrituras, e muitos outros pontos interessantíssimos da Fé Cristã, todos concorrentes à edificação das almas, sem o sacrifício da consciência, essa luz preciosa e brilhantíssima com a qual Deus distinguiu a criatura humana” .

Necessidade de atualização lingüística, e mudança de linha teológica (do evangelicalismo para o anglo-catolicismo, e, deste, para o liberal-catolicismo) levaram a Província do Brasil a abandonar o LOC de 1930 e publicar uma nova versão profundamente mutilada e limitada em 1984, ausente a maioria dos itens de um LOC normal. O Anglicanismo no Sul tendeu a um ritualismo frio, pobre em cerimônias, enquanto no Nordeste tendeu à direção contrária, com cerimônias imitativas de outras ondas denominacionais, empobrecendo o Rito.

O Brasil foi marcado pela proibição de sinais externos de arte sacra não Católica Romana e de ritos apenas em línguas estrangeiras para protestantes imigrantes, durante a Colônia e o Império, pela falta de recursos das igrejas para investimento na arte de adoração, pelo limitado nível cultural dos fiéis, que atingia a sensibilidade estética, e por um antagonismo radical anti-católico romano, que não soube distinguir o essencial do acidental, seguindo antes o extremismo Anabatista do que o equilíbrio Luterano e Anglicano. Ultimamente, com os cultos midiáticos, centrados nos pastores e cantores artistas, fartos de “animação” e rasos de conteúdo, sem ordem, com a “corinhologia” pauperizada em teologia e no vernáculo, temos apenas agravado a crise Litúrgica, que empobrece o nível do povo de Deus.

A tradição Anglicana tem, historicamente, se preocupado com a beleza arquitetônica e a decoração dos nossos templos, com o lugar apropriado para a cruz, o altar/santa mesa, o atril, o púlpito, os assentos laterais para clero e coro, as vestes, a ordem do processional precedida pelo cruciferário, a dignidade, solenidade e reverência no culto, com uma liturgia participativa e dialogal, entre celebrantes e povo. Essa tradição se encontra em choque com o “informal” (?) espírito Pós-Moderno e com a hegemonia anabatista-pós-pentecostal do culto-espetáculo.

Há de se fazer uma diferenciação entre os Símbolos (presentes nos vitrais, azulejos, mosaicos, móveis e utensílios, como a cruz, o cálice e a patena, as cenas bíblicas) e as Cerimônias, que é o “como” da condução dos Cultos, com seus gestos, suas orações extemporâneas, ao tipo de cântico e de presença de grupos de música ou de dança, o uso ou não de velas e incenso, o persignar-se (sinal da cruz), que, de acordo com as várias correntes litúrgicas dentro de Anglicanismo, e as preferências pessoais e comunitárias, são legítimos em sua diversidade, dos Ritos, que são as palavras textuais, com conteúdo doutrinário, e que não são descartáveis ou selecionáveis, mas de todos os celebrantes se requer. Por outro lado, as Rubricas do LOC, sobre procedimentos e o que é reservado para o Bispo, os Presbíteros e os Diáconos, em nossa Igreja , têm força de Lei.

Na situação de excepcionalidade em que se encontra a nossa Diocese, o LOC da IEAB, o Livro de Ritos Opcionais da DAR e o novo LOC editado por irmãos continuantes são fontes para a nossa prática litúrgica. É dever do Clero conhecer, amar e compartilhar, com fidelidade e criatividade, da nossa Liturgia junto ao nosso Laicato, dando uma contribuição (e não sendo cooptados) para superarmos a pobreza, a superficialidade e a anarquia litúrgica reinante no Cristianismo brasileiro reformado em nossos dias.


(Compilação: Revmo. Dom Robinson Cavalcanti )

Os Anglicanos e os Sacramentos

O terceiro item do Quadrilátero de Lambeth , dentre as crenças doutrinárias centrais para os Anglicanos, se encontra: “Os dois Sacramentos ordenados por Cristo mesmo – Batismo e Ceia do Senhor – ministrados com o uso das inexoráveis palavras de Cristo na instituição e dos elementos ordenados por Ele”.

Um Sacramento já foi definido como: “Um sinal externo e visível de uma graça interna e espiritual, que se nos concede, instituído pelo próprio Cristo, como meio de recebermos essa graça, e como penhor que nos assegura dela”.

O Sacramento deve ter sido instituído pelo próprio Cristo – conforme relato dos Evangelhos – cujas palavras são repetidas pelos celebrantes, deve conter elementos externos, visíveis, da natureza (água, pão, vinho), e deve concorrer para alimentar os fiéis, que os recebem pela fé, com a graça de Deus. No Catecismo de um dos Livros de Oração Comum (LOC) de uma de nossas Províncias Anglicanas, Graça é entendida como “o favor de Deus para conosco”.

Em nosso Documento Doutrinário Anglicano da época da Reforma Protestante, do século XVI, os “XXXIX Artigos de Religião” , em seu artigo XXV – Dos Sacramentos, lemos a seguinte afirmativa: “Os Sacramentos instituídos por Cristo não são unicamente designações ou indícios da profissão dos Cristãos, mas antes testemunhos certos e firmes, e sinais eficazes da graça, e da boa vontade de Deus para conosco, pelos quais Ele opera invisivelmente em nós, e não só vivifica, mas, também, fortalece e confirma a nossa fé Nele. São dois os Sacramentos instituídos por Cristo nosso Senhor no Evangelho, isto é, o Batismo e a Ceia do Senhor”.

Aquele importante documento nega o status de “sacramento” a outros ritos não instituídos por Cristo, mas sim pela Igreja, ao longo dos séculos, por mais benéficos que sejam: Confirmação, Penitência, Ordens, Matrimônio e Unção dos Enfermos. Faltar-lhe-ia os elementos essenciais para tanto. Posteriormente, passaram a ser denominados no Anglicanismo de “Ritos Sacramentais” , ou de “Sacramentos Menores” . Enquanto os Sacramentos estão na economia da salvação, os ritos sacramentais estariam na economia da santificação.

O Artigo XXVII – Do Batismo, do Documento acima citado, nos ensina que: “O Batismo não é um sinal de profissão e marca de diferença, com que se distinguem os Cristãos dos que o não são, mas também um sinal de regeneração ou Nascimento novo, pelo qual, como por instrumentos, os que recebem o Batismo devidamente, são enxertados na Igreja; as promessas da remissão dos pecados, e da nossa adoção como filhos de Deus pelo Espírito Santo, são visivelmente marcadas e seladas, a fé é confirmada, e a graça aumentada por virtude da oração de Deus. O Batismo das crianças deve conservar-se de qualquer modo na Igreja como sumamente como à instituição de Cristo”.

O Batismo tem sido entendido como “o ato de imergir, infundir ou aspergir, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, sobre o convertido ou criança “filha da promessa”, ou seja, de pais e/ou avós já crentes” . Ambos os batismos, seguindo, na Nova Aliança, a tradição da Primeira Aliança (circuncisão e batismo de prosélitos) na Igreja Primitiva, segundo farta e confiável documentação do período dos Pais Apostólicos (segundo século). O convertido professa a sua fé, e os filhos da promessa ( “para tu e os de tua descendência” ) recebem a semente do Evangelho, que uma vez devidamente regada pela família da carne e pela família da fé, haverá de germinar, como tão bem nos ensina Calvino.

Como a quantidade de água, além de não-essencial, foi diversa nos primórdios do Cristianismo, os Anglicanos não somente batizam adultos e crianças, mas também o fazem por imersão (em água corrente ou não) e por infusão ou aspersão na pia batismal, com o uso das palavras da instituição por nosso Senhor Jesus Cristo. Em todos os casos deve-se preparar as pessoas e chamar a atenção para a importância desse rito de iniciação cristã.

O segundo Sacramento é tratado no Artigo XXVIII – Da Ceia do Senhor: “A Ceia do Senhor não é só um sinal de mútuo amor que os cristãos devem ter uns para com os outros; mas antes é um Sacramento da nossa Redenção pela morte de Cristo, de sorte que para os que devida e dignamente, e com fé o recebem, o pão que partimos é a participação do Corpo de Cristo; e de igual modo o Cálice de bênção é uma participação do Sangue de Cristo” . Nossa posição rejeita a doutrina da Transubstanciação da Igreja Romana e da Consubstanciação da Igreja Luterana, bem como o do mero memorial defendido pelos Anabatistas. Afirma esse Artigo: “O Corpo de Cristo é dado, tomado, e comido na Ceia, somente dum modo celeste e espiritual. E o meio pelo qual o Corpo de Cristo é recebido e comido na Ceia é a Fé” . Daí os Anglicanos afirmarem, mas não definirem racionalmente (pois sacramento é mistério, apreendido pela fé) o sentido da “Presença Real” de Cristo, que é espiritual e não material, estando presente não nos elementos, isoladamente, mas no Sacramento: rito, palavras solenes, elementos, cristãos com fé.

Os Artigos de Religião afirmam a necessidade de, em obediência ao que está prescrito pelas Escrituras, celebrarmos a Ceia com ambos os elementos: o pão e o vinho, nem só o pão (Igreja de Roma), nem pão e suco de uva (prática que apareceu na Igreja Metodista dos EUA no século XIX), são condenados os que participam indignamente ou sem fé, e afirma-se que a fé e o caráter do celebrante não afetam o Sacramento devidamente administrado e devidamente recebido.

Como afirmação do Corpo Místico de Cristo, e de que nós, os Anglicanos, somos uma parcela provisória e reformada desse Corpo, praticamos a chamada “Ceia Aberta” (a Mesa é do Senhor e não da Igreja Anglicana) a todas as pessoas batizadas, que confessem Cristo como Senhor e Salvador e estejam em paz com Deus e em comunhão com as suas igrejas.

A Ceia do Senhor, ou Eucaristia ( “Ação de Graças” ) era celebrada dominicalmente pela Igreja dos primeiros séculos, como afirmação da redenção e da ressurreição. Fórmulas e ritos foram sendo elaborados, sendo a mais antiga (adotada pela Igreja Ortodoxa Siriana) atribuída a Tiago, irmão do Senhor. As tradições da Igreja Celta e da Igreja Romana foram profundamente afetadas pela Reforma Luterana na adoção dos Ritos pelo Livro de Oração Comum, da Igreja da Inglaterra. Hoje, variações que não afetem o essencial, são adotadas nos LOC's de cada uma das 38 Províncias Anglicanas, e em Ritos Alternativos ou Opcionais, devidamente autorizados pelo Bispo de cada Diocese, único detentor do “jus liturgicum” (autoridade para adotar liturgias).

Os Sacramentos têm como fundamento a própria Encarnação de Cristo, que dignifica a Natureza, e o uso dos seus componentes para o bem estar material e espiritual. Para os Anglicanos as Escrituras e os Sacramentos alimentam a fé e proclamam a fé. Deve-se, contudo, evitar o formalismo, a banalização ou a superstição (magicismo) no tocante aos Sacramentos, que devem ser celebrados “com ordem e decência” , com solenidade e docência, segundo a Liturgia Oficial da Igreja (como prescrevem os Cânones).

Ao convidarmos parentes, amigos e vizinhos para as celebrações do Batismo e da Ceia, emprestamos aos Sacramentos uma dimensão missionária, evangelizadora, como anúncios solenes das Boas Novas. Pregamos, assim, não pela verborragia , mas pela Liturgia , usada, poderosamente, pelo Espírito Santo.

Não podemos negar a História da Igreja e a herança apostólica, negando os Sacramentos. O equilíbrio entre Pregação e Sacramento como explicitações da Palavra de Deus para o Povo de Deus é uma das mais profundas marcas do Anglicanismo.

Vivamos essa Verdade!

Autor: Dom Robinson Cavalcanti, Bispo Anglicano

Limites: Psicologia, Igreja e Espiritualidade

Por Karl Kepler

Dedico este texto para pessoas que, como eu, cresceram e se criaram no meio evangélico e hoje têm dúvidas sinceras sobre o que aprenderam nesse meio. Também peço licença para me expressar de modo mais existencial: falo as coisas como a gente as sente, não necessariamente como elas são em si.

Muitas pessoas que conheço estão num dilema envolvendo sua fé; a contraparte pode ser a psicologia, ou a ciência, ou o dilema igreja-sociedade: cresceram ou se converteram há tempo numa igreja evangélica, aprenderam sobre Jesus Cristo, sobre a Bíblia, oração, participaram de grupos de jovens, etc. mas alguma hora chegaram a um ponto em que toda essa vida de igreja lhes pareceu restritiva demais, e muito limitada em termos de perspectiva. Esse ponto de confronto pode ter sido a Universidade, o curso de psicologia (ou filosofia, ou ciências sociais, história ou afins), ou o contato com "outra turma". De repente "o mundo" que a gente tanto temia como um poderoso inimigo da nossa salvação, se mostra cheio de boa gente, de conhecimentos verdadeiros, capaz de resolver problemas que lá na Igreja não foram sequer levados em consideração.

Para não ser injusto com a igreja, devo rapidamente reconhecer que para a maioria das pessoas que a experimentam, ela significou - através de Jesus Cristo - a libertação de um modo de vida muito pior ("o mundo"), corrompido e corruptor sem igual, onde tudo o que é valorizado é vazio: poder, imagem, sexo, posses e prestígio. Para quem se afundou nessa sociedade, a igreja trouxe a libertação pela verdade que é Jesus Cristo, o evangelho. Mas para quem desde pequeno já tem sido protegido pela igreja dessa sociedade, ou para aquele que, junto com Jesus Cristo, acabou aceitando uma porção de "verdades" falsas e orientações neurotizantes, para esses até mesmo a fantástica salvação em Cristo pode ser motivo de crises e muitas dúvidas.

1. A primeira crise: os limites da igreja e dos pastores

À medida que a gente vai conhecendo mais a realidade de fora, vamos perdendo o medo, e percebemos que o mundo não é aquele "bicho-papão" que nos pintaram. Pelo contrário: é a igreja que acaba mudando de cara, quando percebemos que várias proibições e cobranças eram ignorantes ou absurdas. Vemos que a preocupação obsessiva com o comportamento sexual é descabida, aquele jeito "domingueiro" de se vestir e falar talvez pareça ridículo, as regras sobre controlar o modo de falar, sobre não beber ou não fumar idem; descobrimos que dançar é uma coisa muito boa, e o fim-de-semana pode ser aproveitado em muitas outras coisas interessantes, especialmente se temos uma boa turma de amigos. Então a gente entra numa primeira crise: a vida na igreja evangélica se parece com manter um cavalo dentro de um cercadinho de 4m x 4m: tem muita coisa que não cabe naquela experiência.

Fora da igreja também não é tudo um mar de rosas; na igreja o pastor nos cobrava na pregação de todos os domingos, e muitas vezes nossa consciência faz eco das cobranças. A tentação é grande de achar que "eu não dou mesmo pra coisa" e desistir. Além disso, nossa alma parece perceber que não conseguimos apagar da nossa existência temas extremamente sérios: a existência de Deus, o plano de salvação através da morte de Cristo, a autoridade da Bíblia, etc., o que aumenta um pouco mais a dose de culpa ou o medo da inadequação. Junte isso com a argumentação intelectual e de outras crenças que nos vêm, coisas como: criação ou evolução, os milagres da Bíblia, o contato com esoterismo, mapas astrais, budismo, e por outro lado a dura realidade econômica, política e social brasileira: não é de admirar que os irmãos prefiram ficar naquele cercadinho: a vida é extremamente complexa; temos temas de sobra com que se ocupar ou se desculpar.

Nesse momento, geralmente acabamos por tomar um outro rumo na vida, alguns rompendo radicalmente e saindo da igreja, outros (por causa da seriedade dos temas sobre Deus), ficando com medo de romper ou, ainda percebendo na igreja coisas pertinentes, tentando como que viver duas vidas (isso nem é tão difícil, porque nossas igrejas praticamente só se ocupam do domingo). Possivelmente é a hora em que, quem tiver oportunidade, envereda por uma psicoterapia, de certa forma "trocando de guru": em lugar do pastor da igreja, um "processo de auto-conhecimento", ou uma turma de amigos, ou mesmo um psicoterapeuta mais diretivo. Nessa nova forma "mais consciente" de viver dá para ficar muitos anos. A sensação é de antecipação da liberdade, um entusiasmo pelo novo (a "descoberta da sociedade humana"), uma vez que sabemos muito bem o que não queremos, o velho (a "sociedade evangélica").

2. A segunda crise: Os limites da psicologia

Livre das pressões da igreja muitos arriscam uma separação, uma sexualidade mais plural, uma nova união, um novo curso ou empreendimento, enfim, muita coisa nova para experimentar. A terapia ou a faculdade abrem novos horizontes; os novos amigos substituem os velhos irmãos com vantagens (dá para ser mais autêntico, não precisamos ficar tentando nos controlar em nossa expressão), e a gente vira em maior ou menor grau um "ex-crente". Alguns sepultaram sua fé e puseram uma pedra nisso tudo; outros se tornaram "cristãos bem mais abertos", não conseguindo mais se encaixar em igreja nenhuma, não tendo a menor vontade de ler a Bíblia, mas não abrindo mão de crer no Deus que lá na igreja e na Bíblia conheceram. Ficam algum tempo à procura de alguma igreja alternativa, que na maioria das vezes não encontram.

Mas aí esse "novo estilo de vida" vai deixando de ser novidade. O novo casamento ganha ares de velho, a psicoterapia fica bem menos produtiva, o auto-conhecimento já virou rotina e não gera mais novidade, os novos amigos também têm seus grandes defeitos, o curso universitário foi terminado (ou não) e a gente fica desorientado em meio a tantas linhas divergentes, e lá pelas tantas a gente se percebe com um sentimento muito parecido com o que tinha dentro da igreja. O cavalo saiu do cercadinho de 4 x 4 para um terreno de 20 x 20; tem bem mais espaço, mas lá também tem um limite intransponível. Com uma diferença: o cercadinho ainda existe, mas você não quer voltar para lá, porque já o conhece muito bem. Às vezes a gente tenta "aparecer" lá na igreja, mas o convívio com aquelas mesmas pessoas com a mesma visão curta, as mesmas cobranças do pastor (talvez apenas um pouco modernizadas), as mesmas cobranças dos irmãos... não dá mesmo para retornar. A saída do cercadinho foi algo positivo, uma conquista da qual não queremos abrir mão. A vida humana na sociedade é real, e negá-la não é a saída. Só que ela também tem seus grandes problemas que mesmo uma boa psicoterapia não consegue resolver. E a perspectiva de ficar pagando uma outra pessoa para acompanhar e esclarecer minha caminhada por anos a fio é desanimadora: a vida não pode ser tão complexa assim, que não dê para um ser humano mediano vivê-la. Onde haverá uma saída?

3. A espiritualidade

Talvez seja mesmo função divina essa dos problemas fazerem a gente se lembrar de Deus. Começamos a buscar a "saída de cima". Quem já está muito longe de Deus pode tender a seguir outras espiritualidades, misticismos, budismos, esoterismos e tais (e acaba se afundando cada vez mais). Quem busca algum tipo de volta a Deus às vezes pode experimentar um estilo de igreja diferente: se era evangélico tradicional, pode se atrair pelo pentecostalismo; se era pentecostal, pode se interessar pelas igrejas mais conservadoras (essa mudança de estilo pode garantir talvez mais um ano de "achar que está no caminho certo"). E sempre tem as "igrejas da moda", que seguram por uns quatro anos um grande rebanho de insatisfeitos (com as igrejas que conheceram) porém temerosos (de romper com a instituição "igreja").

Falar dos limites da espiritualidade me é mais difícil; não há como não ser pessoal, e para mim o caminho da espiritualidade ainda é novo. Por espiritualidade aqui quero dizer um relacionamento pessoal, sem intermediário, com o Deus vivo que inspirou a Bíblia e que tem interesse (amor) em influenciar nossa vida; um Deus manso e humilde de coração, que dá descanso para nossa alma, mas que também nos deixa passar por horríveis tribulações e sofrimentos; que nos ama muito, mas que prometeu deixar a revelação escancarada de seu amor para o futuro (mas espera que acreditemos nele agora); que atende orações, mas que não nos dá tudo o que pedimos.

É impressionante o quanto a nossa vida transformada por esse contato com Deus se aproxima daquelas coisas que os pastores da igreja tanto cobram, só que agora não nos sentimos cobrados: sentimo-nos convidados, seduzidos. Depois de uns quinze anos "na geladeira", começou a me dar vontade de ler a Bíblia. E eu já estava há tempo longe daquelas igrejas que ficam cobrando a gente fazer "hora tranqüila" de Bíblia e oração (quando adolescente, dentro do cercadinho, fiz muita "hora tranqüila" e aquilo me fez mal), ou ficam cobrando a gente "se engajar no trabalho da igreja", coisa que também já fiz bastante. Minha alma agora tem sede ( o filho pródigo diria "fome") do Deus vivo. Então a espiritualidade, a busca de uma amizade pessoal com Deus, é um caminho que está me satisfazendo. Mas, repito, é por fora muito parecido com o estilo de vida que as igrejas tentam forjar em seus membros, mas por dentro é completamente diferente; espero um dia conseguir explicar bem essa diferença.

O fato é que a busca de uma igreja condizente com a espiritualidade é uma tarefa infeliz; buscando a orientação de Deus, perambulei por dois anos em igrejas diferentes, e mesmo hoje às vezes não sinto que essa busca tenha terminado. Sei de pessoas queridas que se reencontraram com Deus, mas não estão conseguindo encontrar uma igreja onde se sintam participantes. Que tristeza! As igrejas estão muito mais para "comunidade neurotizante" do que para "comunidade terapêutica". E ao mesmo tempo, muitas pessoas que nela estão parecem se sentir perfeitamente integradas (não cabe aqui avaliar se é de modo alienado, enganado, legítimo, etc.) Tenho a impressão de que -- via espiritualidade -- a necessidade de igreja pode se reduzir para necessidade de um pequeno grupo, enriquecido com contatos extremamente diversificados, tipo Internet, telefone, congressos, workshops, mas um grupo de irmãos em Cristo. E de novo, para outras coisas, a igreja local em que cada um congrega poderá ser necessária. Ou seja, acho que muitos terão de conviver com essa insatisfação pelo resto da vida nesta terra.
Esse deve ser um dos limites da espiritualidade: Deus não nos "desencarna"; Jesus optou por não chamar as doze legiões de anjos para ajudá-lo. Por mais espiritualidade que cultivemos, é vontade de Deus que continuemos extremamente humanos, em relacionamentos humanos, na sociedade humana e contando com os recursos humanos. OK, Ele às vezes decide fazer milagres, às vezes atendendo a nosso pedido, mas está claro que por ora "nossa vida está oculta com Cristo no céu". Ou seja, os limites da espiritualidade devem ser os limites da vida aqui na terra: pecado, dor, injustiça, doença e todas aquelas coisas que "não podem nos separar do amor de Deus" continuam existindo. Imagino que tenhamos então todos os limites de uma peregrinação numa terra estranha. E me parece ser uma caminhada um pouco mais solitária.

Daí que os problemas da alma, que a igreja e a psicoterapia procuravam resolver (e conseguiam só até certo ponto), podem muito bem continuar conosco, mas dentro de uma nova visão, uma nova companhia: como instrumentos para a glória do Deus vivo, ou como meios de receber e transmitir a graça de Deus (tal qual o espinho na carne de Paulo), aquela, "que é melhor que a vida". Isso pode valer para igreja, casamento, vida sexual, turma de amigos, participação política e social, etc.

Então de certa forma a espiritualidade com Deus resgata algumas coisas boas que existiam no "cercadinho da igreja", como a existência de Deus, a salvação em Cristo, a companhia do Espírito, e a Bíblia como palavra de Deus. E abre um novo caminho para a necessária vivência grupal, de termos pelo menos uma ou duas pessoas próximas que sentem e crêem mais ou menos do mesmo jeito ("onde dois ou três"...). Mas ela também preserva (ou, dá a possibilidade de preservar) aquele bom lado humano e social que a igreja tanto podava, o "coração de carne", de modo que os exemplos de fé a serem seguidos agora não são mais "pastores perfeitos", líderes vitoriosos ou pregadores gritando do alto dos púlpitos. Meus novos modelos são pessoas muito humanas, tão boas e tão más quanto eu, que estão tentando andar no caminho de Deus (como também eu estou). Perdemos a "inocência" de esperar a perfeição de nós mesmos. Muitos, tal como Paulo em Filipenses, cresceram na igreja de forma quase irrepreensível, praticamente não cometendo nenhum daqueles pecados que os irmãos tanto reprovam (especialmente adultério), mas já perceberam que isso não vale porcaria nenhuma ("esterco"), que eles são tão pecadores quanto os que adulteraram, e assim "ganharam a Cristo". A espiritualidade - o relacionamento com Cristo - nos liberta de cobranças, de leis e também de modismos mundanos, ao mesmo tempo que nos mantém bastante "presos", pelo afeto, a Deus. Começam a fazer sentido textos como "misericórdia quero, e não sacrifícios", "o fruto do Espírito é... longanimidade, mansidão". E a convivência do joio com o trigo dentro de nós e por toda a nossa vida nesta terra é finalmente aceita, junto com a salvação dada de graça por aquele que ama pecadores. Esse relacionamento reatado, com um Deus que não está mais insatisfeito comigo, dá uma paz e uma saúde que a maioria das igrejas não permite acontecer, e que nenhuma psicoterapia por si só poderia alcançar.

Karl Kepler, pastor evangélico e psicólogo, é também vice-presidente de publicações do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos

O que é o Culto Cristão



O Que É o Culto Cristão

Culto é um fenômeno multireligioso e multicultural. Em outras palavras, está presente em todas as culturas, de todos os tempos e lugares e, por isso, em toda e qualquer religião que se possa descrever. Claro que tal variedade traz a todos uma séria dificuldade do correto entendimento quando estamos pensando sobre o Culto Cristão.

Admite-se, geralmente, que um culto tem por finalidade estabelecer, mediante ritos, dogmas e símbolos, relações entre os seres humanos e a(s) divindade(s). Quer por magia, sacrifício, orações ou outros meios, imagina-se que um culto deva criar, entre o mundo dos deuses e o mundo dos seres humanos, um intercâmbio proveitoso para ambos. Seria, neste ponto-de-vista uma espécie de fonte de revitalização e felicidade, quer para deus(es) quer para seres humanos. Tal modo de entender o culto é profundamente pagão e mesmo contrário ao princípio fundamental do Culto na Bíblia.

A Bíblia, quando desejou falar sobre o que denominamos de Culto, não foi procurar na linguagem humana um termo usado em outras religiões, mas uma palavra que se encontra no dia-a-dia das pessoas. Essencialmente, na Bíblia, culto é serviço. [*] Um serviço nada mais é do que algo que fazemos para outros, podendo ser um serviço doméstico ou um serviço municipal de água e esgoto ou ainda mesmo um serviço social. Mesmo que os termos, quer no hebraico (língua do AT), quer no grego (língua do NT), sejam variados, todos encerram este mesmo significado comum, corriqueiro e bem simples: servir a outras pessoas.

Iniciaremos, pois, afirmando que o Culto Cristão é o serviço que Deus realiza em favor dos Seus, ou em favor do Seu povo. É isto mesmo: culto é ato divino, na Bíblia, e não ato humano. Esta é a primeira e fundamental diferença entre o conceito pagão e o conceito cristão de culto. O culto não é ação humana, mas ato de Deus em favor dos Seus. É serviço divino cujo favorecido é do povo de Deus. Senão, vejamos:

Segundo a Bíblia, Deus é santo e nós pecadores. Estamos apartados d'Ele, pois os nossos pecados fazem uma divisão entre nós e Ele, divisão esta que não podemos por nós mesmos superar. Como, então, poderíamos, sequer, comparecer em Sua santa presença? Razão porque diz Isaías: Quando vindes comparecer perante Mim, quem vos requereu o só pisardes nos Meus átrios? (Isaías 1:12). Somos pecadores e não podemos comparecer diante de Deus, somente aqueles a quem Ele assim "requer", ou seja, aos que Ele chamou. E, claro, se Ele nos chamou isto é graça e misericórdia, ou seja, serviço divino em nosso favor.

Segundo a Bíblia, Deus é auto-suficiente, não precisa de nada e nem de ninguém. Ele é em Si e por Si. Seria mesmo blasfêmia irreverente julgar que Deus precisa de nossas lisonjas ou de nossos elogios para sentir-se satisfeito em Suas vaidades pessoais. Pois muitos há que pensam que Deus precisa de nossos louvores e que, com tais louvores, de algum modo, aplacamos a ira divina de sobre nós, "enganando-O" com nossas doces palavras. Não é Deus que precisa de louvores, mas nós que, louvando-O, retornamos à essência de nossa natureza, pois fomos feitos para o louvor da Sua glória. Assim, poder estar na presença de Deus, o que não poderíamos senão por Sua misericordiosa graça, e ainda poder dirigir a Ele nossa palavra, louvando-O, é, de modo igual, graça misericordiosa, pois, ainda que pecadores. Deus nos permite retornar à essência de nossa natureza, sendo este outro serviço de Deus em nosso favor.

Segundo a Bíblia, Deus é misericordioso e compassivo, paciente e assaz benigno. Por este motivo, ainda que indignos pecadores, podemos comparecer em Sua santa presença e, como um Pai bondoso, ainda que sejamos indesculpáveis pecadores, Ele ouve, no culto, a nossa confissão e nos estende o Seu perdão, sendo este outro serviço misericordioso de Deus em favor do Seu povo.

Segundo a Bíblia, Deus se revela, se mostra, ainda que sejamos incapazes de compreendê-lo em Sua plenitude. Deus se auto-revela ao Seu povo por meio da Sua Palavra. Ele fala conosco, não só Se mostrando, mas, na medida em que Se revela, nos revela a Sua vontade, o Seu plano, o Seu projeto para nós e para o mundo. Em outras palavras: por meio de Sua Santa Palavra Deus endireita as nossas veredas tortas, lançando luz sobre os nossos caminhos para que, realizando a Sua vontade, vivamos, não segundo a natureza decaída e pecaminosa que nos afasta d'Ele, mas conforme a Sua vontade boa, agradável e santa, sendo este outro serviço de Deus em favor do Seu povo.

Segundo a Bíblia, Deus é o dono de tudo aquilo que criou, sendo d'Ele a prata e o ouro. Mas Deus nos permite, com o que d'Ele recebemos graciosamente, participar da Sua obra neste mundo, devolvendo-Lhe os nossos dízimos e ofertas. Nada temos que não seja d'Ele mesmo. Nada Ele precisa daquilo que nos deu. Mas Ele nos dá esta graça de sermos parte do Seu serviço Lhe devolvendo, como expressão de gratidão, um pouco do muito que nos dá. Assim, até mesmo o fato de podermos agradecer a Deus é expressão pura de Sua misericórdia, pois se não ofertássemos não seríamos parte da obra de Deus e, assim, estaríamos fora de Sua obra redentora, de tal sorte que ofertas, sejam quais forem, aceitas por Deus, fazem parte do serviço divino em nosso favor.

Segundo a Bíblia, Deus é soberano e age por Si e segundo o beneplácito de Sua vontade soberana. Mas Ele nos permite, por bondade, realizar a Sua vontade, sustentar a Sua causa. Por isso Ele nos chama e nos comissiona a realizar a Sua obra. Algo que nem aos anjos Ele quis dar, senão somente àqueles que chamou para Si. Para isto Ele nos fortalece, dando-Se a nós como alimento e sustento, sendo esta mesa farta e eficaz. E, ao nos enviar ao mundo, por meio da bênção que invoca sobre os Seus, Deus expressa Sua misericórdia e bondade, confiando em pecadores para que tomem parte na obra da redenção, sendo este outro serviço bondoso de Deus.

O Culto Cristão é o serviço que Deus realiza em favor dos Seus, ou em favor do Seu povo, pois Ele nos vê na solidão do mundo, perdidos em nossos pecados, vai ao nosso encontro, nos chama, nos traz para a Sua presença, nos aceita como somos, nos dá o Seu perdão imerecido, nos permite retornar à essência de nossa própria natureza, fala conosco, Se revela a nós, partilha Seus planos e vontade conosco, nos permite sustentar a Sua obra, nos envolve nela e nos alimenta para que, abençoados, sejamos uma bênção Sua a todos os que jazem na morte O Culto Cristão é ato divino em favor do Seu povo, pois é pura expressão de Sua graça, misericórdia, bondade, paciência e vontade soberana.

O Culto é de Deus e não dos seres humanos. É essencialmente ação divina e não ação humana. É algo que Deus nos dá e não algo que Lhe damos, pois Deus de nada precisa, muito menos aquilo que pensamos poder Lhe dar.

Segundo a Bíblia, Deus não age em vão, ou seja, age sempre visando um propósito, ou um fim proveitoso. Ora, Deus sempre chama de algum lugar para um determinado fim. Ao nos chamar da dispersão do mundo para a congregação dos Seus filhos, Deus nos chama visando um fim proveitoso, quer para os Seus filhos, quer para o mundo. Na lição anterior vimos o serviço de Deus aos Seus, mas nesta veremos o serviço de Deus ao mundo.

Segundo a Bíblia, Deus tem um plano para este mundo. Seu plano é perfeito e eficaz e Ele o está executando. Parte deste plano está relacionado ao Seu povo: é por meio deste povo que Deus realiza a Sua vontade no mundo. No passado este povo foi Israel, hoje, é o Israel de Deus, ou seja, a Igreja.

Não é sem motivo que o termo igreja é uma transliteração do termo grego "ekklesia". O termo grego "ek-klesia" é a junção da preposição "ek" com o verbo "kaléo". A preposição "ek" corresponderia, em português, à preposição "ex" (de fora), e, o verbo "kaléo", ao verbo "chamar". Traduzindo-se literalmente seria "chamados de fora". Deus, que está apartado deste mundo pecador, nos chama para Si. Mas Ele também nos envia, de volta ao mundo, para realizar a Sua vontade, o Seu plano para com este mundo. Neste ponto entra em cena a segunda característica do Culto Cristão, pois ele é, também, o serviço de Deus ao mundo, realizado por meio daqueles a quem Ele chamou e enviou.

O serviço de Deus a este mundo passa pelo serviço da Igreja no meio do mundo. Em outras palavras, Deus nos chama e nos envia com uma missão. Realizar esta missão no meio do mundo é servir a Deus. Servir a Deus é ser uma bênção no meio do mundo que necessita de Deus. Neste sentido, e somente neste, pode-se dizer que o Culto Cristão é servido do povo a Deus, na medida que é serviço feito às pessoas que sofrem no mundo decaído e sem Deus. Nós servimos a Deus servindo o nosso próximo.

Este é o resumo que Jesus Cristo fez de todos os mandamentos: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças, de todo o teu entendimento; e, o outro, semelhante a este é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disto depende a Lei e os Profetas. Assim, temos no Culto Cristão um duplo serviço divino: um dirigido a Seu povo e outro dirigido ao mundo. Deus quer ser servido pelos Seus no serviço que estes dedicarem ao próximo.

Este foi o motivo pelo qual os profetas criticaram o culto da antiga aliança, pois o povo desejava comparecer diante de Deus, receber d'Ele todos os benefícios do culto, mas não serviam a Deus no serviço do próximo. Culto não é ato ritual, mas ato de vida. Cumprir os deveres para com Deus (primeira tábua dos 10 Mandamento: Êxodo 20:1-8) é, de igual modo, cumprir os deveres para com o próximo (segunda tábua dos 10 mandamentos: Êxodo 20:9-17) [**]. O ato de culto deve expressar-se em gestos eficientes, concretos e claros em nossa relação com o próximo. Este é o serviço do povo a Deus, que em nada precisa de nossos serviços, mas que por misericordiosa graça nos chama a sermos partícipes de Sua obra para este mundo, nos enviando de volta ao lugar de onde nos congregou para vivermos conforme a Sua vontade e estendendo a Sua bênção a outros.

Assim, culto não é ritual, melodia, formas, estética, beleza, palavras, cânticos, dogmas, símbolos, ou qualquer outro detalhe que lhe podemos conferir. Culto é vida que vivemos; se ela está à serviço de Deus ou não, se está ou não à disposição de Deus no atendimento do nosso próximo. Por isso Jesus recomenda que, quando trazemos a nossa oferta a Deus, mas o nosso irmão tem algo contra nós, melhor deixar a oferta onde está, procurar o irmão e reconciliar-se com o mesmo (Mateus 5:23-24). A oferta não seria expressão correta do culto, mas um modo de tentar ludibriar a Deus (que tudo vê e sabe).

O Culto Cristão é, assim, um ato de resposta à ação bondosa de Deus. Sendo que de nada adianta apresentar-se a Deus com lindos cânticos, boa música, roupas novas, palavras belamente escolhidas, ofertas nas mãos, se negamos dia-a-dia isto com nossos gestos, não servido ao propósito e ao fim proveitoso para o qual Deus nos separou do meio do mundo. Deus nos chamou com uma finalidade bem clara: Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é que o Senhor pede de ti: senão que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus. (Miquéias 6:8). Por isso diz: Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para Mim abominação, e também as festas, os sábados, e a convocação das congregações; (...) a Minha alma as aborrece, estou canso de as sofrer. Pelo que, quando estendei as mãos, esconde vós os Meus olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei o opressor, defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas. (Isaías 1:13-17).

O Culto Cristão é um ato de resposta à ação bondosa de Deus, que nos recolheu do mundo para nos alimentar e suster por Seu perdão amoroso e Sua Palavra orientadora. Culto não é rito, por mais espiritual que isto possa parecer. Ao criticar atitudes assim, disse Deus: Mesmo neste estado ainda Me procuram dia a dia, dizendo: Por que jejuamos nós e Tu não atentas para isso? Por que nos afligimos e Tu não levas isso em conta? Por que, no dia em que jejuais, exigi que se faça todo o vosso trabalho. Eis que jejuais para rixas e contendas e para ferirdes com punho iníquo; jejuando assim, não se fará ouvir a vossa voz no alto.(...) Este é o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixe livre os oprimidos e quebres todo o jugo,(...) que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os desabrigados, e se vieres o nu o cubras, e não te escondas do teu semelhante. (Isaías 58).

Por Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes

sábado, 28 de junho de 2008

Por que acendemos velas?


Por que se acende uma vela a Deus ou a um santo? Para comprá-los a fim de alcançar uma graça? Ou para apaziguá-los a fim de ficarmos livres de um mal que nos atormenta ou de uma desgraça que nos ameaça? Nem um nem outro. O sentido da vela acesa é muito mais nobre e mais profundo.

SÍMBOLO DE CONSUMAÇÃO

Deus é nosso Criador e nós, suas criaturas; quer dizer que tudo o que somos e tudo o que temos nos foi dado de graça por Deus. Por conseguinte, seu poder sobre nós é absoluto e seus direitos ilimitados. Pode até exigir a nossa própria vida em sacrifício.

Os povos pagãos reconheciam esse direito a seus deuses. Por isso ofereciam-lhe sacrifícios humanos (crianças, geralmente, por causa de sua inocência), para acalmar a sua ira ou conseguir o que desejavam.

A Bíblia nos diz também que o Deus verdadeiro exigiu uma vez um sacrifício humano; pediu a Abraão que lhe sacrificasse seu filho único Isaac. Abraão obedeceu. Mas no instante em que segurava a faca para matar o filho em cima da fogueira, Deus enviou seu Anjo que reteve a mão do pai e substituiu o filho por um carneiro (Gn 22). Deus mostrava, assim, que os sacrifícios humanos não são agradáveis a seus olhos e que só quis pôr à prova a fidelidade e a obediência de seu servo.

Na história da humanidade houve um só sacrifício de seu próprio Filho feito homem, nosso Senhor Jesus Cristo, na cruz, para a salvação e a redenção do gênero humano. Esse sacrifício continua renovando-se misticamente, de modo incruento, onde houver um sacerdote e um altar.

Que relação pode haver entre um sacrifício e uma vela acesa? A vela acesa substitui diante de Deus a pessoa que a acende: Fica se consumindo, como se fosse um holocausto oferecido a Deus. O holocausto era, na Antiguidade e na lei mosaica, o sacrifício mais perfeito, porque por ele a vítima era oferecida a Deus e queimada por inteiro em reconhecimento a seu poder e direito absolutos sobre quem a oferecia. A vela acesa ê um holocausto em miniatura. A pessoa compra a vela que passa a lhe pertencer, a ser sua. Acende-a para ser consumida em seu lugar.

Uma vela acesa a Deus simboliza, portanto, a adoração e a entrega total de quem a acende ao Deus Todo Poderoso, Senhor e Criador de todos os seres. Uma vela acesa a um santo tem o mesmo simbolismo, só que este sacrifício é oferecido a Deus por intermédio deste ou daquele santo.

É claro que está longe de ter o mesmo valor do sacrifício eucarístico, cujo valor é infinito, visto que por ele é o próprio Homem-Deus que se oferece a seu Pai. Mas nem por isso deve ser desprezado ou abolido.

Deve-se, sim, evitar a má interpretação e o exagero, isto é, evitar dar-lhe maior valor do que ele tem. Vela acesa é, pois, símbolo de consumação.

SÍMBOLO DE CRISTO, LUZ DO MUNDO

A vela acesa tem também outro simbolismo. Irradiando luz iluminadora, simboliza Cristo "Luz do mundo", conforme ele próprio se qualificou. Por isso, nos ofícios litúrgicos, usam-se freqüentemente velas acesas, sobretudo durante a semana santa e o tempo pascal. Mas o dia da luz é o sábado santo, de noite, Vigília da Páscoa {os fiéis, aliás, chamam este dia de Sábado da Luz}. Nele, antes da divina liturgia, procede-se à bênção solene da luz: o sacerdote benze, atrás do altar, uma vela acesa e, depois, de frente para os fiéis, convida-os a acender dessa vela benta, suas velas, dizendo:

“A luz de Cristo ilumina a todos!... Bendito seja o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que ilumina e santifica nossas almas”.

E com as velas acesas faz-se uma procissão dentro da igreja ao canto do Salmo 147.

No domingo da Páscoa, ao iniciar a cerimônia da entrada triunfal de Cristo que precede a liturgia da ressurreição, o sacerdote, segurando o círio pascal aceso, convida os presentes a acender dele os seus círios, dizendo: "Vinde, tomai luz da Luz sem ocaso e glorificai o Cristo que ressuscita dos mortos". E todos saem da igreja em procissão com velas acesas, para o anúncio da ressurreição de Cristo, pela leitura do evangelho próprio e o canto, várias vezes repetido, do hino da ressurreição:

"Cristo ressuscitou dos mortos;
venceu a morte a pela morte,
e aos que estão nos túmulos
Cristo deu a Vida”.


Depois, o celebrante bate na porta fechada, exigindo sua abertura e entra primeiro, seguido dos fiéis, sempre com velas acesas, ao canto do Cânon da Ressurreição. É claro o simbolismo das velas acesas: Cristo ressuscitado, luz sem ocaso.

Esse simbolismo, encontramo-lo também no sacramento do batismo, chamado também sacramento da iluminação. Depois de batizar a criança, que passa, assim, das trevas do pecado para a luz da graça, o sacerdote manda, acender as velas que os presentes seguram na mão e proclama: "Bendito seja Deus que ilumina e santifica todo homem que vem a este mundo".

Em qualquer cerimônia litúrgica, em especial na "Divina Liturgia", acendem-se velas no altar para simbolizar de um lado a consumação da criatura diante do Criador, o sacrifício de Cristo em substituição à humanidade; e de outro lado, porque é Cristo que está se sacrificando, ele que é a "Luz do mundo".

A exemplo de seu fundador, que usou coisas materiais (pão, vinho, água, óleo) para significar coisas imateriais e até para transformá-las em seu corpo e sangue, a Igreja usa também o material para esse fim (velas, incenso, ícones, etc.); nossa natureza, que é um misto de matéria e de espírito, o requer. Não sendo o "homem nem anjo nem simples animal" só pode alcançar o espiritual e o sobrenatural por intermédio do sensível e do natural. Sejamos humildes e aceitemos nossa natureza como ela é.

A VELA NO BATISMO

Para os cristãos ortodoxos, a vela usada no Batismo tem um significado muito especial. Como disse o Patriarca Sofrônio:

"Hoje saímos das trevas e fomos iluminados pela LUZ do conhecimento de Deus. No Batismo nós pedimos a Jesus Cristo, que nos envie o Espírito Santo, conforme sua promessa, para iluminar os olhos de nossas almas, a fim de podermos ver Cristo "a Verdadeira LUZ que ilumina todo o homem que vem a este mundo" - Jô 1,9.

A vela do Batismo deve ser mantida pelos pais e apresentada à criança quando alcançada a idade do entendimento. Neste momento, os pais deverão explicar que, pelo Batismo, a criança recebeu a LUZ, que é Cristo: "Eu Sou a Luz do mundo" - Jô 1,5 - e pela Crisma o "Dom do Espírito Santo". Esta Luz ilumina nossos passos para ver por onde devemos trilhar no decurso de nossa existência. Mostra-nos que somos os filhos de Deus, amados, cuidados e redimidos por Ele. Faz-nos pensar que Ele caminha conosco Ele, o verdadeiro caminho, o único meio que nos une (religa-nos) ao Pai e dá-nos a Vida eterna no paraíso. - Jô 14,1-6, 16-17, 26-28.

Jesus é a real e única LUZ para os cristãos, revelando-nos a nossa identidade e o nosso destino.

Nos primeiros tempos da Igreja a vela batismal era sempre mantida pelo batizado. Acendia-se todos os anos no aniversário de Batismo e nos dias dos Santos Maiores. Na Festa da Epifania era trazida para a Igreja e usada para a Renovação das Promessas do Batismo, quando se reafirmava a renúncia ao demônio e a nossa fé em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. (Epifania era o dia em que se realizava um grande número de batismos nos primeiros tempos da Igreja, como também na Festa da Ressurreição). De igual modo, era acesa, esta mesma vela, durante a cerimônia de casamento ou ordem, simbolizando a presença da Santíssima Trindade: a cera simboliza o Pai; o pavio, Jesus Cristo e o fogo simboliza o Espírito Santo. Finalmente no momento da morte, para expressar nossa fé na nova Vida: "Aquele que me segue não andará nas trevas, mas terá a LUZ da vida", - Jô 8,12 - para iluminar as trevas da morte na espera da Luz do Cristo Transfigurado, a iluminar-nos com a Luz da Vida Eterna.

Os pais cristãos ortodoxos devem reviver esta tradição de preservar a vela batismal de cada criança e acendê-la constantemente na festa de Epifania para relembrar sua filiação divina, motivando assim os pequenos a fazer o mesmo nos momentos mais importantes de suas vidas, como nos aniversários de Batismo, ao receber os demais sacramentos ou numa festa especial, vivendo sempre sob a Luz de Cristo.

Todas as famílias ortodoxas, na festa de Epifania ou Domingo após, ou ainda na festa da Ressurreição do Senhor, deveriam reviver esta tradição, renovando os votos do Batismo que nos revigora na Verdadeira Vida que é Cristo.

Na igreja fique de pé, silencioso, sereno, quieto, como a vela acesa que você ofertou à frente do ícone: ela não se move, não faz barulho, arde numa chama forte e sempre para cima, para o céu. Tenhamos essa postura na igreja, ansiando com nossos corações inflamados com amor e oração em direção à Deus.

Bispo Antonio de Smolensk
Igreja Ortodoxa Sérvia do Brasil

segunda-feira, 23 de junho de 2008

A guerra ideológica contra o cristianismo

Por Silas Daniel

Todo mal tem um início. Não é diferente com as idéias que permeiam atualmente a sociedade ocidental. Que o diga Russell Kirk. Russell Amos Kirk (1918-1994) foi um notório cientista político norte-americano e crítico social, conhecido pelo seu conservadorismo. Em 1953, ele lançou um livro que se tornou clássico rapidamente nos Estados Unidos, sendo considerado hoje a melhor obra para entender a formação e o desenvolvimento do conservadorismo na tradição anglo-americana. Por tabela, a obra apresenta também as raízes e o desenvolvimento do pensamento liberal no Ocidente. Estamos falando de The Conservative Mind: from Burke to Eliot (O Conservadorismo: de Burke a Eliot).

Nesse livro, o crítico americano afirma que a onda liberal que hoje vemos no mundo (com a pregação a favor do aborto, da liberação das drogas e da promiscuidade sexual) nasceu no período histórico denominado “Idade da Razão”, especialmente no século 18. Kirk diz ainda que um dos primeiros a denunciar eloqüentemente os efeitos nefastos do liberalismo em sua gênese foi Edmund Burke (1729-1797), pensador e político britânico.

Segundo Kirk, antevendo o futuro, Burke criticou em sua época três escolas que chamou de “radicais” e que estavam tornando-se bastante populares em seus dias:

a) o racionalismo dos filósofos; (b) o nascente utilitarismo do filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham; e (c) o sentimentalismo romântico do filósofo francês Rousseau. Esse último Burke chegou a chamar de “o Sócrates louco”.

O detalhe é que, em sua análise, o político britânico identificou alguns pontos que caracterizaram a onda liberal daquela época, dando-lhe base. Entre eles estão:

1) A crença de que, se Deus existe, “difere radicalmente em sua natureza da idéia do Deus cristão; ele seria ou o ser remoto e impassível dos deístas ou o brumoso e recém-criado Deus de Rousseau”;

2) A idéia de que o homem, diferentemente do que a Bíblia diz, não é tendente ao pecado, mas é naturalmente bom, generoso e benevolente, sendo corrompido pelas instituições;

3) A convicção de que as tradições da humanidade e o ensino bíblico são mitos, confusos e ilusórios, e nos ensinam muito pouco;

4) A fé no ser humano, como sendo capaz de aprimorar-se sozinho e trazer a paz e a ordem ao mundo sem precisar de alguma ajuda divina;

5) O pensamento de que devemos buscar a “libertação das velhas crenças, dos tabus, dos juramentos e das velhas instituições”, e regozijarmo-nos com “a pura liberdade e a auto-satisfação”.

Como vemos, foi ali, no século 18, que a atual onda liberal teve seu início.

Foi Jean Jacques Rousseau quem “decretou” a morte do pecado, ao pregar a teoria da plena bondade natural do ser humano. Depois dele, veio Augusto Comte, com o seu positivismo, afirmando que a religião é o estado primitivo da sociedade. O iluminismo proclamou que a religião não era mais relevante. Assim, chegamos ao ponto onde estamos hoje.

Esses cinco pontos esposados por Edmund Burke explicam, por exemplo, o porquê de a sociedade de hoje viver em um nível moral muito baixo. Já dizia Russell Kirk, em sua obra supracitada, que “problemas políticos e sociais são, no fundo, problemas religiosos e morais”. E ele não está errado. As questões sociais são, lá no fundo, uma questão de moral pessoal. Não é necessário um grande exercício mental para perceber isso.

A sociedade está moralmente à deriva

Imagine uma sociedade onde as pessoas são governadas pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte sentido de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra. Com certeza será uma sociedade sadia, que fugirá tanto do extremo da tirania quanto do seu oposto, a anarquia. Agora, imagine uma outra sociedade, onde as pessoas vivem moralmente sem rumo, ignorando o certo e o errado. Seria uma sociedade onde cada um estaria voltado para sua gratificação pessoal, atrás da satisfação de seus próprios apetites. Sem dúvida, seria uma sociedade doentia, tanto na sua versão mais radical (o anarquismo) quanto na sua versão mais leve, como está tentando ser implementado hoje em todo o Ocidente.

Sobre isso, escreve Kirk:
“O conservador se esforça por limitar e balancear o poder político para que não surjam nem a anarquia, nem a tirania. No entanto, em todas as épocas, homens e mulheres foram tentados a derrubar os limites colocados sobre o poder, a favor de um capricho temporário. É uma característica do radical que ele pense o poder como uma força para o bem – desde que o poder caia em suas mãos. Em nome da liberdade, os revolucionários franceses e russos aboliram os limites tradicionais ao poder, mas o poder não pode ser abolido e ele sempre acha um jeito de terminar nas mãos de alguém.”

“O poder que os revolucionários pensavam ser opressor nas mãos do antigo regime tornou-se muitas vezes mais tirânico nas mãos dos novos mestres do Estado.”

“Sabendo que a natureza humana é uma mistura do bem e do mal, o conservador não coloca sua confiança na mera benevolência. Restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos (checks and balances), correta coerção das leis, a rede tradicional e intricada de contenções sobre a vontade e o apetite – tudo isto o conservador aprova como instrumento de liberdade e de ordem. Um governo justo mantém uma tensão saudável entre as reivindicações da autoridade e as reivindicações da liberdade.”

À medida que o tempo passa, os valores morais vão perdendo seu significado e força, o que resulta em uma sociedade cada vez mais neurótica, hedonista, egoísta e violenta. Não é à toa que é bastante comum vermos os pensadores pós-modernos identificando a sociedade em que vivemos como inundada de patologias, crises e profundos vazios existenciais.

Um sintoma da crise em que vive o mundo é a atual produção artística no planeta. Sabemos que a produção artística de uma época diz muito sobre os problemas, angústias, medos, conquistas, sonhos e aspirações de uma geração. Ora, os livros de ficção, filmes, peças teatrais e pinturas de hoje estão repletos de personagens psicóticos ou figuras que não trazem substancialmente nada, só o vazio. Isso é porque a alma humana no século 21 encontra-se assim.

Outro dia um articulista carioca escreveu, em sua coluna em um dos jornais mais influentes do país, sobre sua profunda infelicidade existencial, chegando a afirmar que tinha inveja da lagartixa, que não aspira nada, a não ser a satisfação de seus instintos naturais. E não foram poucos os que se identificaram com ele!

Os perigos de uma sociedade assim é que, por não ter firmeza moral e sentido na existência, está aberta a qualquer bizarria. O único conceito que consegue-se assimilar é o que diz: “Não se pode reprimir direitos”. Mas onde estão os deveres? Apesar de ainda existirem alguns deveres reconhecidos, até mesmo estes, vez por outra, são questionados por celebrizadas “mentes privilegiadas” de nossos dias. Isso porque, via de regra, o que prevalece no inconsciente coletivo da sociedade de hoje é a idéia de que o dever é visto como mal, “castrador”, destruidor, camisa-de-força. Por isso, os projetos de lei de hoje, em sua maioria, não buscam impor limites; pelo contrário, os retiram.

O cristão genuíno, porém, não sofre essas crises, pois tem a Palavra de Deus, que é sua regra de fé e prática. Seu comportamento e pensamentos são pautados por ela, o que, em vez de inibir sua vocação e suas habilidades, as desenvolvem. Ele percebe limites e, por isso, compreende a existência como um todo e, em particular, a sua missão na vida. Isso porque sem limites é impossível andar com segurança ou mesmo entender a existência. Limites são uma necessidade da própria existência. Eles foram criados pelo próprio Deus para o melhor aproveitamento da vida. Desrespeitá-los é ser infeliz ou infelicitar o próximo.

A sociedade de hoje precisa de valores. Isso significa não só limites, mas também sentido, caminho. Em outras palavras, o mundo necessita da Palavra de Deus. O mundo precisa de Cristo.

Os terríveis efeitos do liberalismo


Thomas Sowell, doutor em Economia pela Universidade de Chicago, publicou recentemente um artigo mostrando que a teoria de que a revolução liberal dos anos 60 trouxe benefícios para a sociedade é uma grande mentira. Ele cita dados em seu próprio país, os Estados Unidos, que provam a falácia de tal argumentação. Escreve Sowell:

“Os esquerdistas podem pensar que os anos 1960 foram o começo de muitas tendências ‘progressistas’ na sociedade norte-americana, mas os frios e duros fatos contam uma história muito diferente. Os anos 60 marcam o fim de muitas tendências benéficas que aconteciam há anos e uma reversão completa dessas tendências quando programas, políticas e ideologias dos esquerdistas foram implantados”.

“A gravidez de adolescentes estava caindo há anos. O que também acontecia com as doenças venéreas. A taxa de infecção por sífilis em 1960 era metade do que tinha sido em 1950. Havia tendências similares em relação a crimes. O número total de assassinatos nos EUA em 1960 era menor que em 1950, 1940 ou 1930 – apesar da população estar crescendo e dois novos Estados terem sido adicionados. A taxa de assassinatos, em relação à população, em 1960, era metade do que era em 1934”.

“Cada uma dessas tendências benéficas reverteu-se agudamente depois que noções esquerdistas ganharam iminência nos anos 60. Em 1974, a taxa de assassinatos já havia dobrado. Mesmo o ícone esquerdista Sargent Shriver, diretor da agência que dirigia a ‘guerra contra a pobreza’, admitiu que ‘as doenças venéreas saíram do controle apesar de termos acesso a mais clínicas, mais medicamentos e mais educação sexual do que em qualquer momento na história’”.

No Brasil, não é diferente. Só para citar um exemplo: a mensagem de que sexo
antes do casamento não tem nada de mais, basta apenas usar preservativos, tem feito mais mal do que bem. Ela é fruto da visão liberal que prevalece na sociedade de nossos dias. Chega a ser ridículo ver a mídia pregar o sexo livre como normal e depois falar de responsabilidade, preservativos etc. Querem tentar amenizar o problema em vez de atacar a sua raiz. O que temos visto na prática é o aumento do número de adolescentes grávidas.

E a onda liberal continua, querendo legalizar o aborto e o uso de drogas, e anunciando a prostituição como uma profissão normal e digna. E ainda têm a ousadia de chamar tudo isso de “avanço”. É o fim.

Silas Daniel é ministro evangélico da Assembléia de Deus em Artur Rios, Rio de Janeiro (RJ), jornalista, conferencista, articulista e escritor.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Amor e concupiscência

"O amor quer o outro ser e o quer na forma de libido, eros, philia ou agape. A concupiscência, ou libido distorcida, quer o próprio prazer através do outro ser, mas não quer o outro ser. Esse é o contraste entre libido como amor e libido como concupiscência."

(Paul Tillich, Teólogo Alemão)

Tillich sabiamente soube distinguir entre a libido associada ao fenômeno amoroso, da libido associada à concupiscência da carne (lascívia). Vivemos numa sociedade cada vez mais erotizada -- no pior sentido da palavra -- onde a forma, o "shape", sobressai em detrimento do conteúdo, do intelecto. Coisas típicas de uma sociedade imediatista, que não se aprofunda em suas questões, e que, para fugir de suas próprias mazelas, refugia-se cada vez mais no entretenimento, no "pão e circo", onde, também, o pão é o corpo alheio e o circo se localiza no lugar "da caça", da busca pelos corpos sarados das boates, das raves, das micaretas.

A que tipo de libido devemos nos sujeitar?

Àquela que é vinculada à sabedoria, que, por conseguinte, é associada ao amor.

sábado, 12 de abril de 2008

Por que Deus não cura amputados?

Esta pergunta volta e meia é encontrada em comunidades orkuteiras frequentadas por céticos e ateus. É uma pergunta capciosa, mas que não resiste a uma análise mais apurada, como mostrarei a seguir.

Respondendo à pergunta:

Porque os seres humanos não são naturalmente dotados a recriar membros amputados.

Ora, posso facilmente explicar que Deus não intervém quebrando princípios formais que Ele mesmo designou. Desde quando o ser humano tem a capacidade de auto-regeneração?

Lagartixas podem. Elas são capazes, por vontade própria, de perder parte do rabo. O processo de soltar o rabo se chama autotomia (auto = voluntário, próprio; tomia = partir, cortar) e significa partir ou quebrar por vontade própria uma parte do corpo. Isso é um tipo de estratégia de defesa para se salvar quando está em perigo.

Deus não viola os princípios formais. Quando Cristo curou cegos, não os dotou com a capacidade de visão dos falcões. Quando curou coxos, não os dotou com a capacidade de propulsão dos antílopes, ou seja, apenas os dotou com aquilo que é restrito à natureza humana.

Se humanos tivessem a capacidade de auto-regeneração e alguns padecessem de uma doença que lhes impedisse esse mecanismo, aí sim seria lícita a pergunta "Pq Deus não cura amputados, para que auto regenerem seus membros?".

Mas não têm.

Portanto, digo: amputação não tem nada a ver com doença, mas com perda acidental de parte do corpo.

O que é curar? É "restabelecer a saúde de". Quando um rim doente é curado, suas funções fisiológicas são plenamente restabelecidas. Não surge um outro rim no lugar daquele que estava doente.

Então, só se "cura" aquilo que está doente.

Curar não tem absolutamente nada a ver com "surgir outro no lugar de".

Em vista disto, sou obrigado a afirmar: Eita perguntinha burra!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Os dois Jesus

Como não é possível, sob o ponto de vista histórico, negar o nascimento de um certo Jesus, na época do imperador romano César Augusto, de Quirino (governador da Síria) e de Herodes, o Grande (rei dos judeus), e como uma boa quantidade de pessoas não consegue acreditar em sua história conforme o relato dos Evangelhos, não há outra solução senão o dilema dos dois Jesus, o Jesus das Escrituras Sagradas (de Gênesis a Apocalipse) e o Jesus das enciclopédias. Essa situação embaraçosa nos coloca diante de jesuses contrastantes entre si. A identificação dada a eles mostra a substanciosa diferença entre um e outro, como se pode ver a seguir:

Temos o Jesus dos Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e o Jesus dos Evangelhos apócrifos; o Jesus eterno (que no princípio estava com Deus) e o Jesus temporal; o Jesus filho de Deus e filho do homem e o Jesus exclusivamente filho de José e Maria; o Jesus morto, sepultado e ressuscitado e o Jesus apenas morto e sepultado; o Jesus cheio (“de graça e de verdade”) e o Jesus vazio (de qualquer vestígio do sobrenatural); o Jesus real (“quem me vê, vê o Pai”) e o Jesus inventado; o Jesus da fé e da razão e o Jesus só da razão; o Jesus imatável (“Ninguém tira a minha vida de mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade”) e o Jesus mártir (aquele que é morto por suas crenças ou opiniões); o Jesus de ontem, hoje e amanhã e o Jesus apenas de ontem; o “próprio” Jesus e o “outro” Jesus; o Jesus da teologia e o Jesus da filosofia; o Jesus da erudição ortodoxa e o Jesus da erudição liberal; o Jesus dos cristãos e o Jesus dos reencarnacionistas.

Entre um Jesus e outro há um grande abismo, que tem separado violentamente os seguidores de Cristo dos simpatizantes de Cristo. O filósofo alemão Gotthodd Efrahim Lessing (1729-1781), filho de um pastor luterano, confessa honestamente que entre o Jesus eterno e o Jesus histórico há um “fosso terrível”, que ele não consegue atravessar “por mais freqüente e diligente que tente chegar ao outro lado”.

O mundo sempre esteve e ainda está tremendamente dividido a respeito de Jesus. Do outro lado do “fosso terrível” há muita gente simples e também renomados pensadores e teólogos. Entre os mais conhecidos e respeitados sobreviventes do dilema destaca-se, por exemplo, um homem de 84 anos que já foi capelão da rainha Elizabeth e hoje é reitor da All Souls Church, em Londres, e presidente do London Institute for Contemporany Christianith. Chama-se John R. W. Stott. Em Por Que Sou Cristão, seu mais recente livro, escrito em 2003 e publicado em português logo em seguida, o apreciado Stott, que acaba de comemorar 67 anos de vida cristã, faz preciosas confissões cristocêntricas:

“Não nos envergonhamos de Jesus Cristo, que é o centro e o cerne do cristianismo” (p. 39).

“Jesus colocou-se numa categoria moral em que estava só. Todos os demais estavam na escuridão; ele era a luz. Todos estavam famintos; ele era o pão da vida. Todos estavam sedentos; ele era a água viva. Todos eram pecadores; ele podia perdoar os pecados” (p. 46).

“A morte de Cristo foi uma expiação, uma revelação e uma conquista — uma expiação pelo pecado, uma revelação de Deus e uma conquista sobre o mal” (p. 58).

“Em qualquer compreensão equilibrada da cruz, confessaremos Cristo como Salvador (expiando nossos pecados), como mestre (revelando o caráter de Deus) e como vitorioso (vencendo os poderes do mal)” (p. 67).

À semelhança daqueles mestres da lei do tempo de Jesus que “não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo” (Mt 23.13), há certos teólogos hoje em dia que são incapazes de atravessar o “fosso terrível” e ainda divulgam suas idéias para dificultar a travessia de outras pessoas. Precisamente há 20 anos foi fundada em Santa Rosa, na Califórnia, Estados Unidos, uma sociedade de teólogos católicos, protestantes, judeus e ateus que se propõe a adotar e divulgar uma teologia anti-sobrenatural através de livros, artigos, conferências e entrevistas. O autor de Jesus: Uma Biografia Revolucionária, John Dominic Crossan, por exemplo, sugere que o corpo do Senhor teria sido enterrado numa vala rasa, desenterrado e comido pelos cães. Para os teólogos dessa sociedade, denominada de Seminário Jesus (Jesus Seminar), Jesus poderia ter sido tudo (um cínico, um reformador social, um feminista, um profeta escatológico), menos Emanuel (Deus conosco), Salvador do Mundo, Rei dos reis. Para eles, 82% do que os Evangelhos canônicos atribuem a Jesus não é autentico. Segundo Robert W. Funk, seu líder principal, o Seminário concluiu que “os contextos narrativos em que as palavras de Deus são preservadas nos Evangelhos são invenção dos evangelistas”.

Esse Jesus esvaziado dos elementos sobrenaturais torna-se igual a qualquer ser humano e perde todo o seu valor. O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, que faria 100 anos no início do próximo ano se não tivesse sido enforcado em abril de 1945 no campo de concentração de Bunchenwall, explica que “considerar o Cristo histórico inteiro significa considerá-lo em todas as três fases de sua existência: encarnação, paixão e ressurreição”.

Os espíritas têm um grande apego a Jesus Cristo, ao ponto de se autodenominarem seus amantes, amigos, apóstolos, caminheiros, discípulos, emissários, enviados, irmãos, obreiros, operários, pequeninos, seareiros, seguidores, servidores, servos, tarefeiros e trabalhadores (a julgar pelo nome de 77 centros espíritas brasileiros). Eles conferem a Jesus inúmeros títulos altamente honoríficos, como “o ser mais puro que até hoje se manifestou na Terra”, “o espírito da mais alta hierarquia divina”, “o mais compassivo dos médicos desde o princípio”, “a maior essência espiritual depois de Deus”, “a manifestação mais perfeita de Deus que o mundo conhece”. Eles se dizem “assembléia de Jesus”, “centelha de Jesus”, “rebanho de Jesus” e “seara de Jesus”. Todavia, ao mesmo tempo, afirmam que “Jesus não é nem homem nem Deus”.

O reencarniocionista americano Edgar Cayce (1877-1945), fundador da Associação para Pesquisa e Iluminação (1931), chega a blasfemar quando ensina que “Jesus é o resultado de uma longa cadeia de reencarnações”. A mesma blasfêmia é repetida por José Simões de Paiva Neto, da Legião da Boa Vontade: “Jesus também começou como nós, na estaca zero. Ele não foi criado com uma perfeição sem jaça. Foi feito simples e ignorante como cada um de nós, claro que anteriormente à fundação do planeta Terra. Jesus evoluiu em outro mundo e foi desenvolvendo o seu espírito de encarnação em encarnação, até chegar à unidade com o Pai, a ponto de poder dizer: ‘Eu e o Pai somos um’”.

Todas as religiões reencarcionistas cometem o monstruoso e ingrato crime de negar o doloroso sacrifício expiatório de Jesus, por meio do qual é possível obter pela fé o perdão dos pecados.


Buda de pernas cruzadas e Jesus de braços abertos

Em suas viagens à Ásia, várias vezes John Stott permanecia parado em atitude de respeito diante de uma estátua de Buda. Lá estava o fundador do budismo nascido há mais de 500 anos antes de Cristo, com “as pernas cruzadas, os braços dourados, os olhos fechados, o fantasma de um sorriso nos lábios, sereno e silencioso, com um olhar distante na face, desligado das agonias do mundo”.

Então, em sua imaginação, Stott voltava-se para outra pessoa, para “aquela figura solitária, retorcida, torturada sobre a cruz, com pregos lhe atravessando as mãos e os pés, com as costas dilaceradas, distorcidas, a testa sangrando nos pontos perfurados por espinhos, a boca seca, sedenta ao extremo, mergulhada na escuridão do esquecimento de Deus”.

A visão do Buda de pernas cruzadas e a do Jesus de braços abertos levou Stott a escrever:

“[Jesus] colocou de lado a sua imunidade para sentir a dor. Ele entrou em nosso mundo de carne e sangue, lágrimas e morte. Ele sofreu por nós, morrendo em nosso lugar, a fim de que pudéssemos ser perdoados. Nossos sofrimentos tornaram-se mais suportáveis à luz do Cristo crucificado” (Por Que Sou Cristão, p. 68).

Fonte: Revista Ultimato